Hip Hop Rádio

Unidigrazz: “Queremos mostrar às crianças que também podem fazer coisas noutros sítios sem ser na rua”

A Hip Hop Rádio marcou presença na inauguração do novo ciclo de exposições do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), que conta agora com “Prisma” da autoria de Vhils, “Naturezas Visuais – A Política e a Cultura do Ambientalismo nos Séculos XX e XXI” com curadoria do primeiro Coletivo Climático do MAAT e “Interferências – Culturas Urbanas Emergentes”, com a curadoria de António Guterres, Alexandre Farto (aka Vhils) e Carla Cardoso.

Não desfazendo todas as exposições que vimos e tendo já entrevistado Vhils sobre a sua nova instalação, disponível para ouvir aqui, fomos convidados agora a entrar num mundo das mais variadas “Interferências” para visitar, nas palavras de António Brito Guterres, “ a cidade, mas desenhada pelas vozes de quem lá mora”.

Esta exposição carateriza-se por afirmar diferentes expressões da cultura urbana, explorando itinerários narrativos da cidade através de um diálogo que privilegia o museu enquanto espaço crítico, lugar de encontro entre várias comunidades e sensibilidades – as instaladas que o frequentam e as subalternizadas que o desconhecem -, ponto de partida para novos começos.

Nas palavras de António Brito Guterres, que introduziu esta parte da exposição, esta é também “uma exposição que fala um pouco da construção da cidade desde 1974 até hoje, da revolução de Lisboa e Democracia, sendo fundamentalmente sobre a área metropolitana. Funciona de acordo com uma certa cronologia, mas também grupos temáticos, sendo possível encontrar um diálogo entre obras conhecidas que estão em coleções em contraste com novos artistas”.

Estes “grupos temáticos” têm os nomes de “Contra a Mudez das Paredes”, “Coerção, Resistência e Identidades”, “Desenho de Cidade Comum, Nós por Nós e Cidade Rede”, “Direito ao Imaginário” e “Padrão”, que contam, no seu todo, com obras de MaisMenos, Abdel Queta Tavares, Alfredo Cunha, Ana Aragão, Ana Hatherly, António Contador, António Cotrim, Blac Dwelle, Carlos Bunga, Ernesto de Sousa, Gonçalo Mabunda, Herlander, Isabel Brison , Julião Sarmento, Julinho KSD, Kiluanji Kia Henda, Luís Campos, Lukanu, Mantraste e moradores do PER11, Marta Pina, Marta Soares, Mónica de Miranda, Nuno Rodrigues de Sousa, Rodrigo Oliveira, Tony Cassanelli (Aurora Negra), Wasted Rita, Né Jah, Primero G, Rico Zua, Apollo G, G Fema, Tropas di Terrenu e The real gunz.

Para além de todos estes talentosos nomes, juntam-se ainda à exposição os artistas convidados: António Alves, Carlos Stock, Diogo “Gazella” Carvalho, Diogo VII , Fidel Évora, Filipa Bossuet, Herberto Smith, Obey SKTR, Petra Preta, OnunTrigueiros, Rappepa Bedju Tempu, ROD (Rodrigo Ribeiro Saturnino), Sepher AWK, Tristany, Unidigrazz e xullaji.

Orgulhando-se de ser uma exposição que procura dar visibilidade a outras dimensões da cidade,  “Interferências” “coloca em diálogo obras de artistas contemporâneos que usam as ruas como contexto de expressão e experimentação e obras de coleções institucionais e privadas” contribuindo para a exaltação de uma narrativa que permite ao público refletir sobre como culturas urbanas contribuíram para o desenho da cidade de Lisboa e desta nova metrópole, também na espectativa de vincular o -algo tardio- início da cimentação da cultura urbana em espaços institucionais.

Falando de novas vozes, já há muito em diálogo, chegamos a Unidigrazz, um coletivo oriundo de Mem-martins, Sintra constituído por Diogo “Gazella” AWK, OnunTrigueiros, Rappepa Bedju Tempu, Sepher AWK e Tristany.

Ao entrar nesta parte do museu somos de imediato recebidos pelas bandeiras de Tristany, que contam com a letra de “Hinu Digra” escrita nas mesmas, enquanto se ouve a música a ecoar na entrada, o mote que serviu de perfeita introdução ao que se avizinhava, com uma das mais imponentes peças de toda a exposição, a meu ver, logo ao virar da esquina, pela autoria de ROD (Rodrigo Ribeiro Saturnino): uma faixa cor-de-rosa choque pendurada, com a frase “Não foi descobrimento, foi matança” pintada com tinta preta.

Passando por obras de vários ilustres artistas como Filipa Bossuet, Herberto Smith, Obey SKTR e Petra Preta, chegamos ao apelidado “cubico” de Unidigrazz, uma reinvenção de uma sala de estar, recheada de arte estática ou em movimento, convidando qualquer um a entrar.

Depois das cordiais apresentações de cada membro do grupo, dando ênfase ao facto de faltar um membro do coletivo, Rappepa Bedju Tempu, procedemos a uma conversa para tentar aprender um pouco mais sobre este coletivo, a sua arte e quais os seus principais objetivos, assim como significado que trazem para esta exposição.

Falem-nos um pouco sobre como surgiu este coletivo.
[Tristany] Já nos conhecemos direta ou indiretamente desde o básico/secundário e da convivência da rua. Mas intencionalmente, antes da Unidigrazz, há muitos outros movimentos que antecedem como a Awake?, os Monte Real, houve uma tentativa também inicial onde por exemplo os Instinto26 faziam parte, o ari.you.ok , ou seja, haviam várias cenas que antecederam o coletivo Unidigrazz. E na construção, em casa do Diogo Carvalho, do início do trabalho visual para o Meia Riba Kalxa, o Diogo,  eu, o Nuno e o Rapepaz começámos com uma ideia bastante descontraída e relaxada de estarmos ali unidos a fazer uma coisa digra. E a defender essa estética. Pronto, isto é um bocadinho, todos nós temos conceções diferentes do que é a Unidigrazz e de como começou, em meados de 2018.

E surgiu então de uma necessidade de fazerem algo digra, como estavam a dizer, de passar essa mensagem.
[Diogo “Gazella” Carvalho] Surgiu mesmo da necessidade de criar. Da necessidade também de dar identidade a algo que já estava a ser construído a algum tempo, então saiu esse nome, de digras unidos, Unidigrazz, e conseguimos com esse nome dar também uma identidade forte ao nosso grupo e depois mais tarde o Sepher também entrou para o coletivo.

E reúnem as mais variadas formas de arte. Têm as artes plásticas, a música, o graffiti, o cinema também. É certamente uma mais-valia, serem um único coletivo que dispõe de talento em todas essas áreas.
[Diogo “Gazella” Carvalho] Sim, acho sempre que quando há mais escolha é sempre melhor e como nós temos este leque assim tão grande de artes também nos vamos entreajudando, um bom exemplo foi o projeto Meia Riba Kalxa. Vamo-nos entreajudando e também conseguindo bem representar e dar rosto (melhor), por termos assim tanto leque. Melhor a quem não tem ou a quem se calhar não consegue chegar a certos sítios, não por falta de capacidades, mas por falta de oportunidade.

E sentem que podem dar essa oportunidade, através da vossa própria curadoria, por também terem ligações mais próximas com outros artistas destes meios?
[Sepher AWK] É mostrar se calhar que é possível, mostrar às pessoas desse meio de onde nós viemos e vivemos e criamos e mostramos, mostrar que é possível alcançar estes objetivos assim, tás a perceber? E conseguir fazer as coisas acontecer mesmo de alguma maneira, vá de certa maneira, começar de um patamar diferente, mas mesmo assim conseguimos. Aquela consequência de todo o trabalho que já consumimos e nos influenciou, queremos poder conseguir ser essas mesmas pessoas e ajudar nessa evolução e desconstrução de bué assuntos da sociedade também e conseguirmos esse lugar.

Estavam a falar de influências, têm algumas influências para o coletivo e para os projetos que desenvolvem?
[Onun Trigueiros] A nossa influência acaba por ser todo o nosso meio que nos rodeia, todos os nossos amigos, a nossa família, os nossos passados em termos artísticos e coletivos e sim, acho que, de certa forma, a maior parte da inspiração que tiramos é daí. Depois também pegamos nessas pessoas e transformamos para os nossos trabalhos de forma mais subjetiva, não exatamente tão relatada como é, mas sim, damos o nosso toque e é isso.

Embora seja uma exposição muito extensa, é possível identificar que um dos pontos em comum parece ser explorar a ideia de que a poesia está nas ruas. Este é um statment com o qual concordam? Que é da rua que vêm talvez as formas mais autênticas de arte e dessa expressão cultural?
[Tristany] Imagina, eu acho que o nosso convite aqui foi muito até ir de encontro a esse mindset, porque facilmente se romantiza a rua ou o subúrbio ou a periferia como um lugar propício para as pessoas criarem ou começarem a ter narrativas boas para se criar. Aquilo que nós estamos a tentar fazer é através do cubico, de dentro, fazer surgir essa narrativa, porque nós não vivemos na rua, felizmente (risos), mas infelizmente o nosso único espaço, onde nós podemos estar, é a rua, e mesmo assim muitas vezes esse espaço é negado e oprimido. E também é importante dizer que a Unidigrazz quer-se digra, mas no sentido mais sensível, no sentido mais de afeto, de amor, porque inicialmente, ou se calhar o primeiro impacto, de tudo aquilo que é digra, é sempre visto como  muscular ou reivindicativo, marginal, ao mesmo tempo exótico, né? Distante. Então o que nós queremos é, acho que uma das nossas maiores narrativas é que digra seja um…
[Sepher AWK] Que não tenha medo de sentir.

Que não tenha medo de mostrar afeto.
[Tristany] Exato, uma pessoa mais sensível.

Essa pode ser vista como uma abordagem bastante fresca para trazerem para esta exposição, embora já se encontre bastante presente na tua (Tristany) música e nas tuas letras, por exemplo. Sempre foi algo que tentaste expor na tua arte, que é okay sentir e é importante ter esse lado mais soft, digamos assim.
[Tristany] Exato, eu não diria fresca, porque acho que sempre existiu. Sempre foi sentido, acho que é por aí.
[Diogo “Gazella” Carvalho] Como dizes, até se ouve nas letras, sempre existiu, acho é que estava mais oprimida, se calhar.

Sentem que agora há a possibilidade de lhe dar uma visibilidade maior?
[Tristany] Sim, mas não é agora que ela existe, e não é certamente por causa de nós ou disto, porque toda a gente sente amor e é algo que se deve mostrar.
[Diogo “Gazella” Carvalho] Tu vês pelas letras de rap lá de tempos mais atrás, em várias periferias, que já há essa necessidade também de deixar sentir, deixar que o digra voe.
[Tristany] Exato. E que não tenha medo disso tudo.

E qual é a mensagem que esperam que fique desta exposição?
[Onun Trigueiros] A mensagem que acho que nós todos pretendemos é… queremos fazer isto chegar ao máximo de pessoas possível e dar a conhecer um pouco a nossa história, quem somos e pronto, basicamente é isso, mostrar às pessoas e acho que às crianças também, principalmente às crianças, que também podem fazer coisas noutros sítios sem ser na rua. Se calhar nós crescemos e não tínhamos assim tantos artistas nos quais nos podíamos inspirar, mas hoje em dia nós queremos sair cada vez mais e dar esse…fazer sentir às crianças, passar a essas pessoas que é possível e que também podem sonhar com isso, que é possível. O objetivo é esse.

Por onde é que passa ainda, na vossa opinião, o diálogo de ser necessária mais representatividade neste ramo artístico? O que ajudaria a trazer mais iniciativas como estas, mais exposições como esta, a sítios com mais visibilidade?
[Tristany] Termos acesso. E isso deixa de ser uma questão.
[Diogo“Gazella” Carvalho] Reivindicar, como tinha dito na apresentação, um lugar que já é nosso, ‘tás a ver, mas que muitas vezes não é dado e revindicá-lo. Nós temos que ter acesso, temos que ter espaço também para conseguir mostrar, para conseguir criar e ter, se calhar, também uma maneira de viver diferente do que normalmente é mostrado, ou que deixam mostrar só, que a linha de Sintra e todas as periferias não seja só um sítio para ir dormir, mas também um sítio para criar, para fazer acontecer, não só arte, mas todo o movimento, que deixem as pessoas também de lá sonharem e terem outra maneira de vida.
[Sepher AWK] Seja o sonho que for. Mostrar às pessoas que é possível sonhar.
[Tristany] E que não precisamos de ir para Lisboa para consumir cultura.
[Sepher AWK] Existe bué cultura na linha de Sintra. Na periferia. Bué. Bué lugares que ninguém conhece, então acho que é mostrar esse lado.

Pode ser que agora passem a conhecer também, e a mostrar um maior interesse.
[Sepher AWK] Sim, sim. Exatamente.

Por fim, gostava de perguntar a cada um de vocês se têm alguma peça preferida das que trouxeram para aqui individualmente.
[Sepher AWK] [risos] Olha, o filme do Diogo é o melhor filme de 2022, pá, lamento Scorsese, toda a gente aí…

Fica a dica.
[Sepher AWK] Chama-se Nha fidju.

E há algum sítio para ver esse filme, sem ser aqui?
[Sepher AWK] Venham à nossa exposição, fica aqui [no MAAT] até setembro, mas vai estar disponível no Vimeo, o Diogo há-de tratar disso.
[Diogo“Gazella” Carvalho] E estamos aí a tratar de umas coisas se calhar… Nha fidju. Fiquem atentos .
[Onun Trigueiros] A minha peça preferida do Sepher é a das camadas.
[Tristany] Eu gosto bué da 1995 do Nuno Trigueiros.
[Diogo“Gazella” Carvalho] E eu gosto muito das bandeiras do Tristany, que estão lá na entrada.
[Onun Trigueiros] Mas o Rappepa também é muito forte…

Uma das minhas peças preferidas é este vitral pintado no teto, que foi o Rappepa que pintou, certo?
[Onun Trigueiros] Exato, é isso.