Primeiro estranha-se, depois entranha-se: a cultura é mesmo segura e o rap está de volta aos grande palcos

Plateia sempre sentada, máscara obrigatória e dispensadores de álcool gel em cada canto. Parece uma realidade distópica, mas é o mundo em que vivemos atualmente. O SBSR Em Sintonia mostrou que a cultura é segura e a música fez-se ouvir, em alto e bom som, no Altice Arena. | Por Daniel Pereira

Há algo que nunca irá mudar: o gosto que o público português tem por música e a grande interatividade com os seus artistas favoritos. Nos passados dias 17 e 18 de dezembro, estivemos no SBSBR “Em Sintonia” e mesmo com todas as medidas de segurança e restrições impostas pelos tempos atuais, pudemos sentir um pouco do que antes era ir a um festival: a correria entre palcos, os gritos e aplausos; enfim, toda aquela sonoridade. É de louvar o esforço da Música no Coração na promoção deste evento e o respeito de todas as regras por parte do público português.

No primeiro dia de festival, depois de várias conferências, sobre a adaptação da cultura a estes novos tempos, a começarem ao início da tarde, no espaço Moche Talks, os ouvidos viraram-se para o Palco Santa Casa. Ivandro deu o pontapé de saída com um concerto intimista e nada melhor que uma voz incontornável da nova geração para começar o SBSR Em Sintonia. Apesar da curta duração, pudemos assitir a um grande concerto que contou com muitos hits, a presença de Bispo em palco para “Essa Saia” e muitas palmas a percorrerem todo o espetáculo culminando o seu fim com “Mais Velho”. A sonoridade urbana no seu melhor.

No palco Ermelinda Freitas, vimos Domingues que, com casa completamente cheia, deu um concerto bastante emotivo. O novo nome da Good Fellas Good Music vai com toda a certeza dar muito que falar, dada a legião de fãs que possui e comprovada pela quantidade de pessoas que aguardavam para assistir ao concerto fora da sala que, devido às medidas de segurança, era limitada e se demonstrou pequena para a gente que podia ter. O hit “FICA.”, contudo, não faltou e fechou o concerto com chave de ouro.

De seguida, e na mesma sala, subiu a palco Amaura que nos transportou para um daqueles bares calmos em que podemos desfrutar de soul, jazz e blues e que pedem a companhia um bom copo de vinho. A artista funde esses três estilos no seu álbum “EmContraste” e ainda adiciona o rap, uma mistura que pudemos ouvir ao longo de todo o seu concerto. A voz inconfundível da artista e as rimas e mestria nos pratos de TNT foram a combinação perfeita para uma atuação que encheu a alma de todos os presentes.

Já no palco Superbock seguia-se Chico Da Tina que deu o concerto mais peculiar de toda a edição. O EP “Trapalhadas”, o álbum “Minho Trapstar” e vários singles de sucesso foram um dos lados da moeda deste concerto. No outro, foi toda uma série de eventos que fizeram um espetáculo à parte: trocas de roupa a meio do concerto (e em palco), apresentação de artefactos, uma espécie de strip-tease, muitos convidades (a transição entre eles foi simplesmente hilariante), cantares regionais e concertina; enfim, houve de tudo e de tudo o público gostou, pois é impressionante a quantidade de fãs que Chico da Tina tem. Ah, e “da Tina” não vem da parte da mãe, é sim o nome da concertina, facto que Chico quis deixar bem claro durante o concerto. Um entertainer estrondoso, essa é a verdade, e um espetáculo que fez jus ao palco que pisou.

Profjam & Benji Price fecharam a primeira noite de SBSR Em Sintonia naquele que era o concerto mais aguardado do primeiro dia (e talvez de todo o festival); sentença final: não desiludiu. “Estamos sentados em palco pois queremos estar ao mesmo nível que vocês” – disse Profjam, a determinada altura. Foi assim que ambos os artistas se apresentaram e, numa toada intimista, mas que deitou cá para fora com toda a pujança a musicalidade de “System”, fizeram daquela hora uma das melhores do ano de 2020. O público cantou e gritou todas as músicas do álbum, Profjam esteve exímio como sempre e Benji Price mostrou que é um artista diferenciado e parece sabe fazer tudo bem. Quem não conhecia a sua vertente de intérprete passou não só a conhecer como a apreciar. Apesar de já anunciada, fez-se também a despedida da Think Music com o temas “Imortais”, que fechou o concerto. E é mesmo isso que esta atuação será: imortal.

O segundo dia de SBSR Em Sintonia trouxe-nos “apenas” Papillon, mas encheu-nos, e de que maneira, as medidas. Este foi sem sombra de dúvidas o concerto mais emotivo de todos os que pudemos assistir. Acompanhado com banda, o MC da GrogNation tocou várias músicas do seu aclamado álbum de estreia “Deepak Looper” e também alguns singles mais recentes. Já sabíamos que na parte musical o concerto seria memorável; e foi, mas o que nos apetece mais escrever é sobre o ser humano Rui Pereira. “Hoje venho aqui com um sentimento agri-doce, não minto. Estou muito feliz por estar aqui, por ter esta oportunidade que muitos colegas meus não podem ter, de vos dar alegria e um bom momento. Mas tenho medo que alguns de vocês levem para casa algo mau, que não desejavam, pois todos sabemos os tempos que vivemos.” – este foi apenas um dos muitos momentos (e mais do que o habitual) em que Papillon falou com o público. Afirmou ainda – “não façam disto uma selva, respeitem o outro, vamos superar isto tudo”. Foi completamente notório o quão o artista está a sentir estes tempos conturbados e acreditamos que para ele, tal como para todos os presentes, este concerto foi uma terapia. Houve momentos para chorar, dançar e, enfim, sorrir. Fica a certeza que, deste concerto, só levámos coisas boas.

Voltámos a ouvir rap nestes grandes palcos, mas não só: fica também a certeza que daqui para a frente mais eventos serão possíveis de ocorrer. Os tempos não são fáceis, mas em conjunto conseguiremos superar tudo e passado o tempo de estranheza, resta-nos entranhar esta nova realidade. Cabe a toda, e a cada um, fazer esse esforço. A cultura é segura, e nunca acabará.