Beat Fest: um marco na história, uma herança para o futuro

No Alto Alentejo não há rede. Pelo menos, não em Ribeira da Venda. Não há como estar online e só durante as tardes – para quem viajou de carro – é que é possível deslocar-se aos aglomerados vizinhos em busca daquele traço a mais, na tentativa de carregar as instastories gravadas na véspera. Assim, as fotografias e entrevistas ficam para depois. Por agora, é tempo de tomar um banho, descansar e, porventura, ler este ensaio e esta reflexão sobre o que o Beat Fest foi, o que criou e representa | Por Bruno Fidalgo de Sousa

A equipa da Hip Hop Rádio esteve em Portalegre para assistir à primeira edição do certame que prometia muito: os nomes de Piruka, Slow J e a dupla de veteranos STK e Mundo Segundo eram cabeças de um cartaz recheado de rap e batidas portuguesas. Agora que a tenda está arrumada e o calor alentejano ficou para trás, é hora de afirmar que a consagração do hip-hop nacional já tem nome e marca. O festival que se orgulha – e com todo o direito – da sua programação exclusiva de rappers e DJ’s e da sua identidade singular chegou ao fim, depois de quatro dias de temperaturas elevadas, durante a tarde no campismo, à noite em palco.

Falar das infraestruturas é redundante, falar das condições é supérfluo. Contar os braços que, para cima e para baixo e vice-versa se agitavam na multidão é missão impossível. Mais fácil seria contar as horas de calor extremo que os campistas superaram, ávidos pelo próximo concerto. Hoje, muitos hip-hop heads podem sentir-se orgulhosos de ter estado na primeira edição de um certame feito para durar e que, das mais variadas formas, se distingue dos demais.

Há muito que os festivais deixaram de ser festivais de música para passar a ser festivais de verão. É inegável o quão rentável para as organizações é a aposta nos nomes mais conhecidos das massas, nos nomes que se colocam no topo de vendas em Portugal e não só. Já não é só pela programação que se vai a um festival. É pelo espírito, pela festa, pela moda ou pelo que quer que seja. Quando falamos do Beat Fest, não podemos falar em festival de verão ou em festival de música. Falamos em festival de hip-hop. Não de rap, mas de hip-hop. E isso – seja para os veteranos e pioneiros, seja para os recém-chegados a esta cultura – é, não só um prazer, mas uma vitória. Porque o espírito, em Comenda, Gavião, era muito mais do que aquele que se esperava: “aquele sabor e toque das old school hip-hop parties”.

Obviamente que esse sabor e toque já não são os mesmos, também por culpa da própria evolução do movimento. Se faltava alguma coisa, seria o breakdance, a única vertente sem representação – Youth One, um dos pioneiros do graffiti nacional, esteve durante os três dias oficias de festival encarregue das tintas. Também um cypher à moda antiga se enquadraria, ou até mesmo um confronto de turntablism (sugestões para as próximas edições?). Mas, se hoje em dia esta cultura se pode orgulhar de ter um festival exclusivo, muito se deve à aproximação do público, cada vez mais numeroso.

(Relembro-me do meu primeiro festival, de todos os outros que vieram por contágio, das festas de hip-hop e das festas caseiras com a coluna de mão a vibrar. A diferença entre todas essas sessões musicais está no público, na forma como sentem o que cantam e na forma como, todos juntos, sentem o hip-hop. Phoenix RDC contou à Antena 3 que só no Hard Club sentira o mesmo ambiente que em Comenda. Isso é de louvar.)

O Beat Fest tem agora espaço para deixar uma herança pesada às próximas gerações. É um marco no movimento, como quase todos os que passaram pelo palco nestes últimos dias afirmaram. É o fator exclusividade: um festival de hip-hop, organizado por malta do hip-hop para malta do hip-hop – quando digo “malta”, refiro-me a todos os hip-hop heads e a todos os fãs que marcaram presença e não arredaram pé durante as horas de concertos, refiro-me à malta que cá caminha desde o início. E, quando falo em exclusividade, falo do quão única é esta arte. Se, antigamente, havia a “malta do rock”, a “malta do metal”, “a malta do funk”, hoje – e já há alguns anos – podemos falar da “malta do hip-hop” e da forma como, a pouco e pouco, se vai conquistado cada vez mais espaço, seja em boombap ou trap, seja nova ou velha escola.

Foram quatro duros dias – muito sol, demasiado calor e bastantes horas de pé. Foram muitos braços no ar e muitas rimas e batidas levadas pelos mais eclécticos artistas dentro daquilo que é o rap e, acima dele, o hip-hop: do freestyle de Eva RapDiva e Sangue Bom (MC do coletivo Alcool Club), aos mosh pits incentivados pelos GROGNation, por Kappa Jotta ou Holly Hood, aos refrões de Phoenix RDC ou Dillaz, cantados do fundo do peito pelo público, aos pratos de Nel’Assassin, Gijoe, Kwan, à guitarra de Slow J ou à vibe de Mishlawi ou Cálculo.

O hip-hop nacional está mais vivo do que nunca – o hip-hop nacional esteve em peso em Comenda e o Beat Fest tem tudo para continuar. E, como a última frase do set de Stereossauro que encerrou a festa, a mensagem de despedida só podia ser esta: “se é para morrer, morremos de pé”.

Fotografia de Bruno Fidalgo de Sousa