Hip Hop Rádio

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Morad ao vivo no Coliseu dos Recreios – 21 outubro de 2023

Desliguem os Motorola e desfrutem da energia do fenómeno espanhol

Por Diogo Marchante | Fotografia de Bruno Marques

Foi no passado dia 21 de outubro que o fenómeno do Hip-Hop espanhol, Morad, regressou a Lisboa para dar, novamente, um espetáculo memorável para os seus fãs portugueses. Mas, desta feita, num Coliseu dos Recreios completamente esgotado e ao rubro para ver o rapper de Barcelona, que já tinha causado grande furor aquando da sua vinda a Portugal para o NOS Alive 2023.

Se ainda havia dúvidas de se o sucesso dos últimos quatro anos de Morad em Espanha, também se tinha estendido ao nosso país, então todas as dúvidas acabaram com este enérgico espetáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Morad chegou com tudo a Portugal, no início da sua “Eurotour”, e não podia ter sido de outra forma para poder estar ao nível dos seus fãs que o aclamaram efusivamente toda a noite.

Com concerto marcado para as 21h, às 20h a fila para o Coliseu já era bastante extensa e, quando finalmente, dentro da mítica sala de espetáculos lisboeta, se fecharam as luzes para se “bailar” ao som dos principais hits do rap, trap e drill de Morad, já todos os espetadores gritavam em uníssono pelo rapper, que veio do Hospitalet de Llobregat com um orgulho tremendo de poder voltar a atuar para os seus fãs “vizinhos”.

Ao longo de 1h30m, Morad presenteou os seus fãs com um pouco de tudo: os seus principais sucessos que o fizeram “explodir” por volta de 2020 e 2021 como “Yo No Voy”, “Motorola”, “Soñar” ou “Quando Ella Sale”; bem como sucessos mais recentes como “Mama Me Dice” e faixas do seu mais recente álbum Reinsertado (2023) como “Se Grita”. Foi uma verdadeira “viagem” por toda a carreira do rapper, mas fosse qual fosse o som, o público sabia as letras todas de cor e cantavam junto com Morad de forma efusiva deixando-o muitas vezes boquiaberto.

Morad foi retribuindo também todo o carinho e energia positiva que ia recebendo da parte dos portugueses, colocando, por exemplo, a bandeira portuguesa à sua volta enquanto cantava “Normal”, e cantando até de propósito uma música que não gosta muito de tocar ao vivo, mas que o fez por saber que os portugueses gostam muito dessa música.

Sempre muito interativo com o público, Morad teve ainda a audácia, de iniciar um debate futebolístico com o público do Coliseu, antes de começar a tocar a famosa “Como Están”, sobre qual era o melhor clube em Portugal e, sobretudo, qual era o melhor futebolista do mundo. Quanto a isso, apesar dos esforços portugueses para glorificar Cristiano Ronaldo naquele debate, entre CR7, Messi e Mbappé, a escolha do rapper espanhol, de origens marroquinas, recai sempre, pois claro, sobre o seu amigo da seleção marroquina, Achraf Hakimi.

Foi, portanto, um espetáculo que teve um pouco de tudo, uma energia vibrante e contagiante, momentos mais sentimentais, um pouco de humor à mistura também mas, sobretudo, a certeza de que Morad faz jus a toda a aura e carisma que transmite com as suas músicas e videoclips e, quando rodeado dos fãs corretos, transforma-se num grande artista de palco também.

PABLO HÁSEL: QUANDO O HIP-HOP É CRIME

O silêncio português tem sido ensurdecedor. Em Portugal, a detenção de um neonazi russo, há algumas semanas, levou a centenas de manchetes – já a condenação a Pablo Hásel, MC do nosso país vizinho, não despertou o interesse dos media. As várias plataformas de esquerda reagiram, mas a única notícia nos principais orgãos de comunicação social sobre o caso espanhol foi dada pela Sábado. O que nos diz este silêncio? O que nos mostra essa decisão do Supremo Tribunal espanhol? Hip-hop não é crime. Mas a justiça espanhola parece, mais uma vez, querer criminalizá-lo. Depois do caso de Valtònyc (2018) ou da identificação dos membros do grupo Adebán por cantarem “Arriba, abajo, mandaremos al rey al carajo”, um rapper do outro lado da Ibéria é condenado a nove meses e um dia de prisão pelo teor das suas letras (e tweets). Mas Pablo resiste. Pois a resistência da sua expressão artística tem sido sempre a sua maior arma.

Pablo Hásel tinha até às 20 horas da última sexta-feira para se entregar. Não o fez. “Exilado” na Universidade de Lleida, na Catalunha, aguarda a sua iminente prisão. O seu caso tem gerado manifestações (e inclusive uma possível revisão penal). Um manifesto, assinado por mais de 200 artistas espanhóis (onde se incluem o famigerado realizador Pedro Almodovár, Javier Bardem ou Joan Manuel Serrat) defende a liberdade do MC catalão. Em Portugal, as palavras de solidariedade partem, principalmente, dos movimentos socialistas – Pablo Hásel é militante comunista e não o pretende esconder. A sua música é o bastião da sua liberdade. Seria impossível traçar qualquer paralelismo com a realidade do hip-hop nacional, mas não é isso que pretendo com esta crónica. Às horas a que as minhas palavras serão publicadas, as palavras de Hásel ainda ecoam – e ecoarão – pelas ruas do país com o maior número de presos políticos da União Europeia. Onde a liberdade de Pablo é condicionada pela Coroa bafienta.

“Qué legitimidad tiene el heredero de Franco que en juergas y putas nuestra pasta está tirando”; “No me da pena tu tiro en la nuca, pepero, me da pena el que muere en una patera.; “Mi hermano entra en la sede del PP gritando ¡Gora ETA! A mí no me venden el cuento de quiénes son los malos, sólo pienso en matarlos”

Versos como estes (e 64 mensagens nas redes sociais) foram declarados como “injúrias à monarquia e à polícia, incitadores de violência e enaltecedores do terrorismo”. Comparações e acusações deste calibre já levaram, por exemplo, ao exílio belga de Valtònyc e, em 2014 e 2018, a penas suspensas ao mesmo MC que, hoje, se vê em risco de prisão. Pablo Hásel não pretende fugir do país. Espera que o vão “sequestrar”, como o próprio afirma. Resiste. O povo com ele. E levanta questões que não se podem ignorar, como os media nacionais bem tentam. Pode o hip-hop ser crime? Pode qualquer expressão artística ser condenada em tribunal? Pode um regime dito democrático silenciar os seus opositores pela via legal? Quantos rappers mais serão julgados pelo Supremo Tribunal espanhol e, encarcerados ou em fuga, continuarem a resistir – ou a calar-se para sempre?

A minha solidariedade está com todos os que usam a sua expressão artística como forma de crítica, resistência ou militância. Pablo Hásel é mais uma vítima do fracasso que é o sistema penal espanhol. Pablo Hásel é mais uma vítima do silêncio ensurdecedor da Europa – democraticamente falível, condenavelmente cega. A sua prisão é uma lâmina de dois gumes, o precedente para legalmente fazer cair “a espada de Dâmocles que paira sobre a cabeça de todas as figuras públicas que ousem criticar publicamente a atuação de alguma das instituições do Estado”, como se lê no manifesto em sua defesa. Enquanto Pablo espera o seu “sequestro”, permite-se, em Madrid, uma concentração nazi. O branqueamento do fascismo começa em Franco e continua quando a extrema-direita se senta no parlamento. E quem se opõe, como prova o caso de Hásel, passará a ter medo de exercer a sua liberdade. Ou a continuar resistindo.

Pablo Hásel será preso pelas letras das suas músicas e pelas palavras dos seus tweets. O confronto perante as injustiças, perante a classe dominante, perante as instituições falhadas do Estado, será sempre um dos ex-libris de um género irreverente, onde a palavra pesa mais do que a pena, onde a arte cumpre o seu papel de resistência. Hip-hop não é crime. Crime é e será o silenciamento de quem o canta, perante a omnipotência de uma democracia em ruínas, perante “un ataque contra nuestras libertades”.