A janela sobre a Cidade Invicta estava aberta. Na nossa vista, a noite fria não impedia centenas de pessoas de se juntarem à porta do Coliseu. Sobre as suas cabeças, as nuvens estavam carregadas de água, aguardando pacientemente pela entrada do público para depois se desmancharem nas ruas vazias. Seria prenúncio do que aconteceria em palco, mas já lá vamos.
O instrumental de “When A Man Loves a Women” fez levantar as cortinas. Não, não estão a ler o texto errado: os acordes da música de Michael Bolton serviram como base para dizer que era “altura de Don Gula”. Seria este o mote para o início de concerto: roupagem nova, mas mais Gula do que o que iríamos ter seria impossível.
A banda orquestrada por New Max serviu de bandeja música em estado puro, as back vocals inebriaram o espírito da sala e Regula, mesmo longe do Catujal, fez do Coliseu casa. De postura segura, deu calmamente os primeiros passos em palco, trazendo consigo a maturidade de mais de vinte anos de carreira marcados no corpo. Lá fora caíam as primeiras gotas de chuva sobre a calçada, coincidindo de forma orquestrada com uma inesperada face de Gula a vir à tona.
O ambiente, apesar de novo, tornou-se tão familiar que “Rosas” fez desabrochar uma faceta não tão vista do nosso rapper. A emoção tomou conta do Da Vila que a custo segurou a voz, mas não conseguiu conter as lágrimas.
Com o passar do relógio, Regula começou a ganhar asas, dando tudo de si: presenteou-nos com participações de nos tirar a respiração e fez-nos sentir que não havia grades a separar palco e público. Kristoman seria o primeiro convidado a brindar a plateia com “Conway” e Sam The Kid, mais tarde, na sua delivery bem característica levaria o Coliseu ao rubro.
Permitam-me recorrer à ficção para definir o real. Em “Birdman“, de Iñárritu, podemos ver a certa altura, numa nota colada no dressing room da personagem principal, “a thing is a thing, not what is said of that thing”. E Don Gula será dos raros casos onde é unanime o que cimentou e o que se escreve sobre o mesmo: não apareceu numa altura de comentários ou visualizações, sempre teve mão firme para escrever por si e numa altura em que lhe apontaram o dedo de “comercial”, agora será fácil dizer que estaria uns bons metros à frente de todos, estaria nos dias de hoje onde a cada dia o registo comercial anseia por se colar à cultura Hip Hop – e não o contrário.
Descendo novamente à terra: foi pela palavra que vimos Regula em carne e osso e foi pelas palavras do pequeno Santiago que sentimos cada poro do nosso corpo. Veecious V, de sorriso rasgado, tomou conta da plateia num dos momentos mais especiais do concerto com uma versão de “Solteiro”. Decidir qual o melhor não é tarefa fácil, momentos antes NBC brilhava com a sua voz eletrizante e, na reta final do concerto, Gson demonstrava mais uma vez a sorte que é termos um artista destes no nosso país.
Durante hora e meia, percorreríamos temas desde “1ª Jornada” até ao mais recente e tão aguardado álbum “Ouro sobre Azul”, desde Diálogo ou Gana a Toni do Rock ou Júlio César.
“Muito obrigado pelo amor, carinho e acolhimento estes anos todos” seriam as últimas palavras, carregadas de emoção sincera, que nos diria antes de fechar com Casanova.
Soou o último acorde, desligaram-se as luzes, mas a plateia não queria deixar ir o Da Vila. Entoava-se Regula num mar de vozes, enquanto os pés a bater no chão faziam o Coliseu estremecer. A verdade é que o artista já havia levantado voo e nós ficaríamos, tal como no final de Birdman, a olhar pela janela vendo o seu corpo voar no céu.
Cá continuaremos de janela aberta à espera do próximo avistamento.