Hip Hop Rádio

Quem conta um conto acrescenta sempre um ponto: A história do Hip Hop Tuga regressa à Altice Arena

Em 2019 a Altice Arena recebeu um novo conceito que chamaria milhares de pessoas a um acontecimento que -embora já tivesse sido estreado no Festival Summer Fest- parecia um daqueles eventos únicos e imperdíveis, de fazer qualquer amante da cultura do hip hop largar tudo e ir. Também não era para menos, pois quem experienciou essa noite, como eu, nunca mais se esqueceu, não apenas pela injeção de dopamina que é ver quase todos os teus rappers preferidos uns a seguir aos outros, mas pelo sentimento de que estás a fazer parte da história, enquanto a mesma é contada (e vivida) à tua frente, na forma mais pura e tocando em todos os quatro pilares desta cultura, com writers a pintarem painéis e crews a mostrarem os seus melhores dotes de breakdance, ao som de alguns dos melhores DJs e MC´s de Portugal.

E é certo e sabido que a história se repete e, desta vez, repetiu-se mais cedo do que se podia imaginar.

A Faded voltou a conseguir a proeza de juntar mais de 30 nomes de MC´S, DJs, writers e crews, expressando assim os quatro pilares do hip hop na altice arena, sítio que normalmente associamos a grandes acontecimentos que arrastam multidões. Não sendo exceção à regra, milhares de pessoas dirigiram-se a tal emblemático local desta vez transformado em museu vivo, para uma visita de estudo dedicada à história do hip hop tuga. 

E a visita guiada começou pelos anos 90, mais concretamente 1992, com Gabriel o Pensador, um nome gigante de se presenciar que, embora possa não ser do conhecimento de todos, desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da história do hip hop português.

Antes de se dar o boom da evolução do rap em Portugal, com o lançamento em 1994 do álbum “Rapública”, tomou lugar no Pavilhão Carlos Lopes o concerto de Gabriel o Pensador, que reuniu toda a comunidade do hip hop, contribuindo, mesmo que indiretamente, para a “validação” de que esta cultura não só tinha um público e comunidade considerável, como muito potencial para se tornar mais expressiva. Honrando esse caso, através das suas músicas -que começaram também a passar em programas de rádios portuguesas- este artista foi também um impulsionador para o estabelecimento da língua portuguesa como uma língua -e ferramenta- válida para a divulgação de assuntos importantes através das suas letras, como desigualdades sociais, racismo e todo o tipo de assuntos pertinentes, o que também potenciou a abertura, de certa forma, de um mercado para o rap em Portugal, depois de se revelar como um caminho viável. Há quem diga que este concerto foi o maior ajuntamento relativo a hip hop na altura, um fator crucial para chamar a atenção dos media e restante população na época para dar a aparência, neste caso, verdadeira, de um “peixinho a ficar grande”. *  E o resto é história.

Desta forma, chega a ser poético Gabriel o Pensador marcar presença num dos maiores acontecimentos de hip hop da atualidade novamente, todos estes anos depois.

Assim, agora pisando o palco desta famosa arena, depois de um importante discurso onde explicou a importância que o hip hop tem na sua vida, considerando-se um “viciado” nesta arte, o artista apresentou para uma sala quase lotada os seus temas “O Resto do Mundo” e “2345meia78”, sendo seguido de imediato por Black Company, grupo que se celebrizou precisamente no álbum “Rapública” com o tema “Não sabe nadar”, música escolhida para apresentarem nessa noite também.

E a partir daí desenrolou-se uma história, agora algo abreviada -caso contrário precisaríamos de talvez uma semana de residência na Altice Arena- dividida em atos recheados de talento e devoção à cultura, algo sentido da fila da frente, aos lugares sentados mais atrás.

No mesmo bloco de artistas e não abrandando na nostalgia para as mais variadas faixas etárias,  prosseguiram com Mind da Gap para abrir os anos 2000 com o tema “Todos Gordos”, seguidos de Sam the Kid e Mundo Segundo com a mítica “Não Percebes”, para assinalar 2002 e fechar o primeiro de cinco momentos que contaram também com a importante presença de DJ Nelassassin, DJ Bomberjack, DJ Glue, DJ Kronic e DJ Cruzfader, assim como as crews de dança, Zoo Gang, 12 Makakos, Momentum Crew e Gaiolin Roots -que iam acompanhando as mais icónicas rimas e batidas -e os writers Crack Kids Crew e Nomen & Dê.

Ainda a relembrar os “bons, velhos tempos” o segundo bloco também se encheu de artistas que cantaram músicas bem conhecidas da infância de alguns de nós.

Bezegol deu o mote com o seu tema “Quando Escrevo”, para abrir caminho para Expensive Soul com “Eu Não Sei” e “13 Mulheres”, músicas que nos marcaram, nem que seja pela mítica altura conhecida como “época dos morangos”, em triunfo das antigas séries infantojuvenis. Não desprendendo do tema, o artista que se seguiu foi Sam the Kid com a legendária “Poetas de Karaoke” e, ainda na categoria de hinos que ficaram consagrados para sempre, um dos mais aguardados nomes, Valete, pisou o palco ao som de “Roleta Russa”, perante uma plateia que sabia cada palavra deste som de cor e salteado. Fomos ainda presenteados novamente com Bezegol, Chullage e também Dealema, que apresentaram o seu tema “Sala 101”.

Já em 2014 e avançando para o terceiro conjunto de artistas, o espetáculo continuou numa forte nota, com o que considero ter sido um dos momentos altos da noite: Capicua decidiu declamar a capella o seu tema “Alfazema”, entoando para milhares de pessoas a empoderadora mensagem: “Contradições nascem com tradições opressivas/Como lições para sermos fracas e reprimidas/Sem auto-estima postas de lado como um talher/Não foi p’ra isso que nasci uma mulher/Não vou cumprir com a puta da expectativa/Não é para ela que oriento a minha vida”. Esta mensagem revela-se ainda mais forte sabendo que Capicua foi uma das apenas duas MC´s de rap feminino presentes neste espetáculo. A artista cantou ainda a sua conhecida música “Vayorken” antes de o espetáculo prosseguir com Tribruto, a representarem o Algarve, NGA ,também com um poderoso momento a capella da música “Tá Brinka com Kem”, juntando em palco outros membros da Força Suprema e Tekilla, que apresentou o tema “Sinónimo”, que partilha com outra das lendas presentes, Sam the Kid. Ainda houve espaço para a dupla Deau e Bezegol cantar o seu sentido tema “Como Seria” e, mantendo esta linha mais romântica e introspetiva, Bispo, com a faixa “Dinâmico”.

No próximo bloco foi chamado ao palco o emblemático DJ Cruzfader e a Crew Zoogang para interpretar, em forma de dança, os temas apresentados neste que foi um dos conjuntos de artistas que mais comoção gerou, tendo aberto com duas duplas de peso: Mundo Segundo e Sam the Kid e Blasph e Sanryse, ambas para continuar a representar 2015. Seguiram-se dois nomes que causaram muito entusiasmo ao virar o ano para 2016, Holly Hood com “Cobras e Ratazanas” e Dillaz com “Mo Boy”, ambas cantadas na integra pelo público, que emanava euforia, já prontos para receber outro conjunto que nunca desilude, Alcool Club. Constituído por Praso, Sanguinbom e Montana e ainda com a participação de Sara D Francisco, este grupo de Sines mostrou-se novamente como sendo um dos grupos de hip hop com maior presença de palco de palco vistas na atualidade, ao terem cantado “Qualquer coisa e um pouco de Jazz” e a recente faixa “Sítio onde nunca saí” em ambiente familiar, incentivando sempre a plateia a repetir as letras.

Também com uma forte presença de palco voltou Valete, este que foi um dos nomes mais mencionados quando se falava da falta de artistas cruciais na última edição deste espetáculo. Desta vez marcou presença e confirmou a hype, metendo o público, perante uma lenda, a cantar a plenos pulmões “Rap Consciente”. No final, o artista deixou ainda uma importante mensagem; depois de congratular Capicua e todas as mulheres presentes -ou não- que contribuíram para a história do hip hop tuga, aproveitou o momento para deixar um apelo: “Precisamos de mais mulheres a rimar. Homens, incentivem as vossas amigas, irmãs, namoradas.”. Não podia concordar mais. Embora seja um facto que o cartaz deste evento poderia ter contado com muitos outros nomes femininos, haverá sempre alguém que falta e não sabemos da disponibilidade dessas artistas, porém é um facto que é bastante escassa a oferta de rap feminino em Portugal e a visibilidade atribuída quando o há, nesta que continua a ser uma cultura e indústria muito gerida por homens, validando o facto de que não deve ser fácil penetrar o mercado e sentir-se apoiada. Também eu deixo esse apelo para alguma mulher que esteja a ler, para acreditarem no seu potencial e partirem para a luta, que haverá apoio sim, pelo menos deste lado. Há tanto que precisa de ser dito ainda.

Depois deste poderoso momento passámos para 2018 e pudemos contar ainda com atuações de Dillaz novamente, desta vez com “Clima”, Kappa Jota com “Tribo” e Papillon com a bonita “Impec”, que arranca sempre um coro de vozes da plateia e olhos marejados imersos em reflexão, enaltecendo o bonito que é quando a música vibra na nossa pele e nos faz sentir cada palavra como se tivesse sido escrita por nós.

Com o relógio já a assinalar algo como quatro horas de espetáculo, aproximámo-nos do último bloco de nomes, desta vez mais atuais, de 2019 a 2021, inaugurados por Phoenix RDC com o seu hit “Vencedor”, X-Tense com “P de Pablito” e Grognation. Embora este grupo tenha optado por cantar “Orelhas Quentes” e “Body” e não a famosa “Voodoo”, não deixaram de entoar a letra do refrão para deleite dos presentes, que repetiram verso a verso, como se de um mantra se tratasse.

Não abrandando no ritmo pisou o palco Julinho, um dos nomes mais esperados pela plateia -sobretudo mais jovem- ao som de “Sentimento Safari”, seguido de imediato por outro nome bastante esperado, Nenny, que apresentou a canção “Sushi”.

Que nem os filmes de Christopher Nolan voltámos novamente atrás no tempo com Nerve e o seu tema “Tríptico” e Capicua, de novo, desta vez com “Madrepérola”, para avançarmos mais uma vez e terminar o espetáculo com T-Rex que incendiou o palco com “Tinoni” e uma versão encurtada a capella de “Tempo” e ainda Vado Más Ki Ás com a canção “Vida Louca”.

Foi Nenny que fechou o espetáculo ao som de “Tekilla”, enquanto todos os artistas participantes se juntavam em palco, para celebrar mais uma noite de storytelling em frente a qualquer coisa como 10 mil pessoas.

Terminou assim mais uma edição da História do Hip Hop Tuga e a verdade é que, como diz o ditado, quem conta um conto, acrescenta sempre um ponto. E ainda bem. A história desta cultura é demasiado extensa e rica para se condensar num espetáculo, por mais tempo que este possa durar, mas acredito que será sempre de uma extrema importância tentar fazê-lo e, por consequência, adicionar. Que venham nomes novos e mais underground, mais mulheres, mais “OG´s”, mas o facto é que irá sempre faltar alguém, o que devíamos considerar como um sinal indicativo de que crescemos mesmo muito desde aquele concerto de Gabriel o Pensador em 1994 e que o Hip Hop Tuga não só está vivo como se encontra em constante crescimento. Por isso, que se saiba que há sempre pontos a acrescentar e que o que se testemunhou ali foi, ainda assim, apenas a ponta de um icebergue tão extenso que chega certamente aos destroços do Titanic.

*Consultar a tese de doutoramento de Federica Lupati para mais informação sobre este assunto. Disponível aqui.

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