Numa altura em que estamos fechados em casa, tudo o que estimula o pensamento e a imaginação é bem-vindo. Fazendo-o através da música, talvez um dos melhores exemplos seja o álbum “o chão do parque ” de Zé Menos que, nos convida a passear, sem termos de sair de casa. Lançado em novembro de 2019, este é um álbum que se destaca por várias razões. Ouvi-lo é como entrar numa narrativa sem saber bem para o que vamos, o que nos faz refletir, ao tentar desmistificar os significados por detrás de cada faixa. Ao longo de doze músicas são-nos dadas todas as ferramentas para pintarmos uma imagem mental, através de inúmeras e fortes metáforas, de toda uma paisagem natural que nunca deixa de contrastar com a crueza do chão do parque – ideia muito bem captada na capa do álbum, da autoria de Teresa Arega.
Na primeira faixa “a queda, exposição” Zé menos introduz-nos de imediato ao que vai ser este álbum, por meio de metáforas. Decifrando-a como se decifra também esta obra, esta música é um hino ao medo de sair da sua zona de conforto e falhar, cantado por quem mesmo assim o fez, lançando-se na mesma, em jeito de leap of faith porque “cair também é voar para quem não tem medo” e há algo de libertador nisso.
Segue-se a faixa “gravidade” onde este continua o desabafo introspetivo sobre lutar contra si próprio e aceitar finalmente expor a sua arte – algo mais difícil por este ser um projeto mais autobiográfico – uma viagem frustrante, como detalhada pelo próprio, pois também o artista quer sair da sua zona de conforto mas sabe que, ao fazê-lo, existe a possibilidade de, assim como as folhas das árvores do parque, o seu destino ser o chão. No entanto, assim se entrega à gravidade pois não deixa de querer tentar.
Sem nunca perder o fio à meada, ao longo de músicas como “41,textura” e “ninho pt. 18,insensatez” o artista vai explicando os seus medos, vícios e mágoas, sempre invocando elementos da natureza e comparando-os consigo mesmo e com as suas lutas, revelando mais uma vez como este disco possui um caráter intimista tão imaginativo como real.
É pertinente referir que embora esta obra apresente uma narrativa bastante consistente no que toca a temas, nem por um momento se revela monótona, pois existem sempre elementos inovadores em cada uma das faixas, quer a nível de texto ou de melodia e ritmo. Em “o liquidambar” somos surpreendidos com apontamentos de ritmos brasileiros que se costumam ouvir, por exemplo, no samba. Na faixa anterior o artista também menciona Jobim – Antônio Carlos Jobim, famoso compositor brasileiro – pelo que talvez este álbum espelhe também os gostos pessoais do autor, neste caso por música brasileira, o que, mais uma vez, atribui a esta obra um caráter não só intimista, como também bastante dinâmico. Outros exemplos de variedade são faixas como “mar morto“, onde o artista apresenta um registo mais ríspido e “Caso Chova“, uma música terna onde o mesmo declama um poema sobre a frustração e angústia de sentir que poderá nunca conseguir alcançar o seu potencial máximo, sobre uma melodia envolvente onde predomina o saxofone.
Gostaria de dar especial destaque a duas músicas: a primeira é “Olhos negros“, um take fascinante sobre demónios interiores. Embora esta seja uma música alegre que chega a incitar à dança por apresentar novamente ritmos de samba, o significado da letra é bastante profundo e denso e fala – embora que de maneira “mascarada” – sobre como seria se o artista tivesse “olhos claros” – fosse mais positivo, não sofresse de qualquer tipo de insegurança ou autossabotagem. À medida que canta novamente sobre os seus olhos – a seu ver – negros, a melodia esmorece e é dominada pela revolta do artista.
A outra música teria de ser “descalço/os que dançam“, uma das músicas que mais brilha nesta obra. Sem nunca abandonar o registo rico e sentido da escrita, à qual nos expôs desde a primeira faixa, Zé menos criou assim uma música que poderia facilmente ser um hit, sem nunca deixar de passar uma importante mensagem. Esta música fala sobre o medo de se sentir desadequado e desemparado na vida adulta e como é difícil lidar com os desafios que a mesma traz, “porque os outros parecem saber falhar e eu não”.
A última faixa “o voo” é uma completa contradição à primeira música e assim oferece uma conclusão perfeita a esta obra. Num tom mais animado, o artista revela o que aprendeu ao sair da sua zona de conforto, algo que acabou por ser uma experiência positiva e por isso incentiva as “folhas” a fazerem o mesmo, triunfando sobre o medo.
Tendo mantido uma consistência enorme no que toca à intercalação dos elementos da natureza com os seus demónios interiores, Zé Menos mostrou-nos assim, em forma de arte, o processo de luta contra o medo de se expor, a si e às suas inseguranças, tendo saído triunfante no final. O caráter confessional e pessoal deste álbum faz com que o mesmo se destaque de muitos, por o fazer de uma forma tão bem conseguida, o que traz uma lufada de ar fresco à esfera do hip hop atual. Esta é uma obra que puxa pelo sentido de interpretação de cada um; um bom exercício para se fazer durante a quarentena.