Hip Hop Rádio

“No princípio era o verso”, no fim, um grito de resistência

No passado dia sete de maio de 2021, ouviu-se um grito de resistência há muito desejado: a cultura está viva e recomenda-se. Quem lançou o mote foi o Festival 5l, que veio restaurar alguma esperança em tempos conturbados, com muito Hip Hop à mistura. E é claro que a tua rádio esteve lá.

Este festival literário ocorreu em Lisboa, entre cinco e nove de maio de 2021, com o intuito de “celebrar simultaneamente a Língua, a Literatura, os Livros, as Livrarias e a Leitura”. O mesmo aconteceu por iniciativa da Câmara municipal de Lisboa e contou com uma extensa programação de debates, mesas de autor, concertos, cinema, visitas, exposições, lançamentos de livros e encontros, que decorreram em quatro espaços principais: o Teatro Municipal São Luiz, o Museu da Farmácia, o Cineteatro Capitólio e Cinema Ideal.

Tendo em conta a importância da palavra e da lírica neste evento, revelou-se quase imperativo ir beber à fonte de onde fluem tão belos poemas, ricos em storytelling e mensagens subliminares: o Hip Hop; foi assim que surgiu o concerto que juntou grandes nomes como Amaura, Maze, Nerve, Perigo Público e Chullage, num espetáculo imaginado por Rui Miguel Abreu e com direção musical de Rafael Correia.

O Cineteatro Capitólio foi o palco eleito para um desfile de artistas cujas veias fluem poesia e corações pulsam em ritmos e batidas. Todos eles com uma história para contar, receberam luz verde para iniciar a purga ao soar a frase: “No princípio era o verso” –dita em tom de apresentação, por ser também o nome do evento.

Foi Rafael Correia aka Gijoe que estreou o palco, mostrando os seus dotes nos pratos, acompanhado por Léo Vrillard, no teclado. Ambos abriram o apetite do público para o que seria uma hora de poesia vozeada, carregada de críticas sociais e mensagens políticas, começando de imediato pela t-shirt do próprio DJ, que trazia estampada uma mensagem importante e bem clara, repetida várias vezes: “Fuck Racism”.

Nerve foi o primeiro rapper a pisar o palco ao som de “Mínimo”, faixa que partilha com Ghost Wavves, exaltando a plateia, que se fez ouvir a alto e bom som, apesar das máscaras – e todas as outras precauções que foram devidamente tomadas- impostas por este novo normal. Depois da sua saída juntou-se em palco João Frade com o seu acordeão, honrando a cultura portuguesa e abrindo caminho para a segunda convidada, Amaura, que pisou o palco ao som do seu tema “Terabyte” e, logo de seguida, “Só Sinto”.

A cada intervalo entre artistas convidados, o palco enchia-se de musicalidade num casamento de pratos, acordeão e teclas, resultante em poesia tocada.

O próximo artista a incendiar o palco foi Perigo Público, que arrancou manifestações de apoio da plateia, ao executar uma acesa performance do seu tema “O Ano da Morte de Amaru Shakur”, recebendo aclamações especialmente calorosas ao entoar os versos desta mesma canção: “ Ninguém é racista, todos têm um amigo preto/ é por isso que apertam a mão a um branco como o pescoço a um negro.”

O artista agradeceu a quem tinha saído de casa “para manter a cultura viva”, antes de apresentar outra faixa: “1974”, que partilha com SICKONCE, presente em palco. Com esta música o rapper decidiu fazer homenagem a Waldemar Bastos, -o recentemente falecido músico e cantor angolano, que combinava afropop, fado e influências brasileiras- passando um excerto da sua música “Velha Xica”. O verso “Xê menino não fala política” entoou pelo Capitólio, até Perigo Público terminar a sua performance, afirmando: “Há vozes que não se podem calar. Boa noite, Capitólio. Sejam bem-vindos à resistência!”

De seguida foi Maze a apresentar o seu tema “Rumo ao Infinito”, que terminou também com uma homenagem, desta vez ao professor, filósofo e poeta Agostinho da Silva e à sua célebre reflexão: “Provavelmente toda a nossa vida é poesia, todo o objetivo da nossa vida deve ser, quando acabássemos, as pessoas dizerem: morreu um poema.”. Esta deixa serviu como uma ponte para o seguinte momento de poesia, da autoria do artista e em exclusivo, com o qual nos presenteou.

Por fim, foi a vez de Chullage levar a plateia ao rubro, admitindo, entre debitadas de poesia cheias de mensagem e críticas sociais: “Já estou emocionado com esta iniciativa linda”. O artista terminou a sua prestação a solo com o forte verso: “(…) ou chama aquele que diga alto o que murmuravas no café”, garantindo uma fervorosa salva de palmas da parte da audiência.

O público -ainda aceso com as intensas prestações dos artistas- não teve descanso, ao ver Nerve entrar novamente em palco, para assombrar com o seu tema “Tríptico”, que arranca sempre coro da plateia na parte: “Querida, esqueci o teu nome, acho que vou chamar-te…um táxi.”; algo que não ouvíamos há muito, como enaltecido pelo próprio, que admitiu: “Já lá vão 365 dias desde o último (concerto)”.

Para finalizar este grandioso espetáculo, seguiu-se um momento inédito onde todos os artistas puderam – novamente- mostrar a sua destreza  lírica: conduzidos por Amaura, que cantava uma melodia com tons de jazz , juntaram-se, à vez, Perigo Público, seguido de Chullage, Nerve e Maze, para debitarem versos em modo freestyle, sobre os mais variados assuntos e de uma forma tão fluída, que impressionou todos os presentes – e quem se encontrava em casa também, certamente, pois foi possível visualizar o concerto via streaming, em simultâneo.

Assim terminou este espetáculo, que tinha como objetivo “mostrar como o rap em Portugal se tornou fértil território de reinvenção poética, oferecendo novas ideias a uma arte em que todo o verso vem também com o seu próprio reverso“. Não podia ter cumprido melhor. Todos sabemos que a cultura enfrenta momentos extremamente difíceis – agravados pela falta de apoio devido- e por isso, em tempos tão instáveis como os que correm, iniciativas como o Festival 5L revelam-se como um verdadeiro lembrete da importância, detalhe, e rigor das artes do espetáculo e do fundamentais que estas são para o nosso dia a dia: quer seja para estimular a capacidade de reflexão, entender vários pontos de vista relativamente a assuntos pertinentes, ou relembrar-nos ainda de como a música consegue sempre agir como forma de escapismo, mesmo que por apenas uma hora, dentro de um cineteatro, repleto de pessoas distanciadas e com a face oculta.

A cultura continua bem viva e este evento é prova disso, como podes ver na nossa publicação –disponível do Instagram da Hip Hop Rádio– com vídeos deste evento, capturados por Daniel Pereira.

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