Numa noite em que escapou à meteorologia adivinhar chuva, ocorreu dilúvio e todos os afluentes foram dar a Titanic Sur Mer, para estar na presença dos mensageiros do próprio: Nerve, Blasph e Il-Brutto, um concílio capaz de abanar qualquer embarcação.
Com uma fila notável para embarcar num navio que, desta vez, se presumia chegar a bom porto, as expectativas eram altas ao entrar no Titanic. Lá dentro sentia-se uma atmosfera que condizia bem com as cabeças de cartaz, já a ser pintada pelos endiabrados instrumentais de Il-Brutto -com direito ainda a um a capella de Freddie Gibbs sobre um beat seu.
Fomos assim embalados antes da tempestade, em águas que, no entanto, nunca se mostraram calmas, até aparecer o primeiro capitão da noite: Blasph aka Frankie Dilúvio.

Para apresentar a primeira música a título próprio: “O Meu Quarteirão”, fez-se acompanhar de Dani, envergando bandeiras de homenagem à Margem Sul e a Caio, um dos seus “irmãos” (como apelidado pelo próprio), perdido para a violência nas ruas, algo que “não acontece só na América”.
Seguiu-se a apresentação de uma panóplia de favoritos do público, constituída por temas como “Cantinho do Mal”, que partilha com Beware, a icónica “Rap D1 Gajo”, “Suspeitos do Costume” e ainda “Incandescente”, recebidas pelos presentes com um entusiasmo de louvar, ação concebida por Blasph, que retirou uns momentos de debitar clássicos para se dirigir à plateia. Num discurso sincero e despido de artifícios, sobre a importância de se saber reconhecer o bem que nos é feito, o artista agradeceu a quem o tinha ido ver e chamou ao palco alguém que lhe “fez muito bem”: TNT. Após uma acesa performance de “Fod** o Rap”, juntou-se o “guilty kid” Kulpado, formando assim 2/2 de M.A.C, para cantarem “Carga Nisso”, single presente no seu novo álbum “Sem Título”.

De volta ao foco principal em palco, Blasph refletiu sobre o facto de não dar um concerto há três anos, enquanto acabava a sua garrafa de Jack Daniels, em tom de celebração do retorno. O artista apresentou ainda os temas “Fardo”, “€uros Ramazotti”, “Nuvens Cinzentas”, “Doses” e “Ondulação”, antes do “Boa Noite” mais aguardado das últimas semanas: trata-se claramente da faixa “Buonasera”, assalto estilo royal flush, servido pelo trio assassino Blasph x Nerve x Il-Brutto. Fazendo jus à vibe da música, antes de pisar o palco, com a pujança de quem se propõe a separar as águas ignorando qualquer tubarão, era ouvida a voz de Nerve em ad-libs na parte de Blasph, como se viesse do além, lembrando quando nos thrillers se começa a ouvir a música que indica a proximidade de um assassino, antes do mesmo se revelar.
A sua súbita materialização em palco arrancou gritos, palmas e entoações de apoio fervorosas, combustível potente para o que foi servido nesta segunda parte do concerto, reservada ao próprio Nerve e convidados.
Tirando um momento para agradecer a presença do público, mesmo após as novas medidas face à pandemia, não poupou ninguém no que toca a “debitar matéria”, apresentando a sua melhor seleção de faixas prosseguindo com “Mínimo”, “Deserto”, “Lápide” e “´98” a capella, que faz sempre uma ponte ideal entre a menção a Carlos Paredes na música e a guitarra portuguesa ouvida no início da faixa seguinte, “Ingrato”, tema que partilha com Stereossauro.

Seguiu-se a apresentação de “Gangrena”, num ato de benevolência e com um tom algo humorístico, para com quem não segue o artista no Patreon, onde este tema se encontra disponível.
Ainda em clima de partilha e interação com o público, foram apresentadas três faixas reinventadas sobre instrumentais de Il-Brutto, sendo a primeira “Monstro Social”, um dos temas que mais incita o diálogo entre o público e o artista, e as restantes “Fumigajas” e “Pobre de Mim”, fundidas num medley que se destaca pelo seu cariz íntimo. O tom confessional da poesia a ser declamada sobre este novo instrumental lento e envolvente funciona como um contraste com as rimas habitualmente mais agressivas, sendo possível ter um vislumbre de Nerve enquanto poeta e declamador, caso dúvidas houvesse entre quem nunca frequentou uma sessão de Purga.
Aproximando-se da reta final, mas ainda com espaço para algumas surpresas, o artista brindou a plateia com “Subtítulo” e as tão aguardadas “Nós e Laços” e “100 problemas”. Celebrizada no programa “Primeira Vez”, esta última faixa conta agora com sucesso tal que com certeza consagra Nerve como o único rapper que alguma vez pôs uma plateia a tentar entoar a palavra “dimetiltriptamina”.
Antes de terminar, foi chamado ao palco o último -mas certamente não menos importante- elemento chave para encerrar o ritual, Tilt, juntando-se assim 3/3 de Escalpe na proa, prontos para agitar marés ao som de “Thomasin” e “Quezília”, nova faixa do trio mortífero, que ameaça um dilúvio por enquanto só possível de sentir ao vivo. Por parte de quem já ouviu, que se imagine uma escrita e instrumental de fazer cair uns quantos santos do altar.

A viagem concluiu-se ao som de “Tríptico”, ideal para quem acabou de sair do barco e precisa de chamar um táxi; um verso que suscita a entoação pujante de todos os presentes, progressivamente mais entusiasta a cada concerto que ocorre.
Finalizou-se assim um concerto repleto de rimas excecionais que, de facto, podiam virar regra. A performance dada pela parte destes nomes de peso demonstra um talento, que embora já se mostre mais à tona de fundas águas, continua a revelar apenas a ponta do icebergue para a mestria que possuem. Da escrita genial de Nerve e Tilt, aos instrumentais sem comparação de Il-Brutto e passando pela entrega de Blasph, fica bem claro que o que quer que seja que venha daqui não é passageiro.
Prova disso são as sessões, esgotadas ou não, onde se nota claramente que quem marca presença não só consome a obra, como a interpreta e reconhece a sua importância, validando a crença de que artistas como Nerve possam estar “a escrever em pedra“, no sentido em que o seu legado poderá prevalecer durante muitos anos. Não é – de todo- música de dança, mas certamente dá espetáculo e quem vai sai impressionado.
O próximo concerto de Nerve e Il-Brutto tomará lugar no Porto, no âmbito do festival Natal do Marginal. Bilhetes disponíveis aqui.