Depois de alguns avanços e recuos e toda uma pandemia pelo meio, um dos mais míticos eventos voltou em toda a sua glória, para nos agraciar com o melhor que sabe fazer: enaltecer a cultura urbana. A Hip Hop Rádio marcou presença na décima edição do Festival Iminente, que decorreu entre sete a dez de outubro de 2021, quatro dias repletos das mais orgânicas expressões de arte, oferecendo exposições, instalações, graffiti, dança, tatuagens, e música…muita música.
Anteriormente realizado em Oeiras e depois no famoso Miradouro Panorâmico de Monsanto, este festival criado por Vhils tem agora uma nova casa: Matinha, localizada num dos mais recentes e prolíficos focos de cultura em Lisboa, em constante expansão, o Beato, perto da Underdogs Gallery.
Desta vez com um tema relacionado com feira popular, fazendo alusão à diversão efémera, fugaz e elétrica da qual sentimos tanta falta, foi-nos proporcionado um recreio de arte espalhada, paredes outrora abandonadas vestidas de graffiti e outras obras de arte ocupando os espaços por artistas como Mariana a Miserável, Pedro Podre, Pipoca e OpenField, honrando um dos principais conceitos do festival: pegar em algo abandonado e fazer dele uma enorme instalação de arte, como tão bem sabe Vhils fazer.
A festa nunca parou, tomando lugar em três palcos, para além de todo o recinto que respirava arte: Palco Gasómetro, com maior capacidade, o Palco Choque, uma literal pista de carrinhos de choque e o Palco Cine Estúdio, que nos matou as saudades de uma boa estufa de calor humano e entusiasmo.
Começámos o primeiro dia logo com uma grande voltagem de energia, numa data que parece ter sido estipulada para dançar, como tanto tínhamos saudades. Honrando o sentimento, a primeira atuação vista foi uma batalha de breakdance no Palco Choque, que mais tarde continuou no Skate Park. Acontecendo duas vezes por dia, as batalhas de breakdance revelaram-se como uma das mais entusiasmantes performances a não perder, reunindo sempre uma grande e entusiasta multidão para as ver, sempre acompanhadas pelo host Wilson e thebboywannabedj.
Não abrandando na energia e adicionando-lhe mais uns quantos volts poderosos, dirigimo-nos ao Palco Gasómetro para ver Pongo, num concerto que incendiou o palco, a plateia e todos os que poderiam estar a ouvir, mesmo que de longe. Este concerto foi a personificação de tudo o que mais sentimos falta, a energia radiante e unida de todos os presentes, o cantar em uníssono, a dança desenfreada, os empurrões, coros e pó levantado; tudo isto coordenado pela artista, que dançou e cantou incansavelmente, levando-nos desde hits como “Bruxos” -que apresentou no A COLORS SHOW – a uma nova versão de “Kalemba (Wegue Wegue)“, não fosse ela uma ex–integrante de Buraka Som Sistema. A artista chegou a saltar do palco e ir dançar para o meio da multidão, tal não era a energia sentida, naquele que foi um verdadeiro grito desafogado de liberdade em forma de concerto.
Não se afastando muito da energia sentida em Pongo, Plutónio veio devolver algo há muito em falta: um moshpit, ao som de “Cafeína”, um dos seus mais conhecidos temas. Este concerto serviu para mostrar que o público nunca parou de ouvir as músicas que mais gosta, como o próprio agradeceu pelo feito, tendo como prova disso o coro de vozes em uníssono, que respondia a todas as músicas apresentadas. Este coro explodiu em “Lisabona”, validando os versos: “Depois do coliseu, a única coisa que bateu mais que eu foi o corona”.
O ritmo não esmoreceu, passando desta vez para o palco Cine Estúdio com Scúru Fitchádu, numa performance de pura garra e calor humano, e seguiu-se o Palco Choque, que não estava menos cheio, onde uma multidão fez papel de carrinho, na área dos carrinhos de choque e se agrupou para ver DJ Glue. Este icónico DJ eletrizou todo o recinto, com remisturas de hinos do rap, do mais antigo ao mais recente, arrancando aplausos e gritos da plateia.
Em simultâneo estava a acontecer o concerto de DJ Shaka Lion no palco principal, numa onda mais reggae, naquele que foi um dia de triunfo para DJ’s. A noite acabou honrando este facto, de forma explosiva, com DJ Ride a causar estrago no palco Cine Estúdio, com uma destreza invejável, exibindo diversas técnicas de scratch e domínio da mesa de misturas.
Ainda a recuperar do dia um, seguiu-se o que considerámos o dia mais aceso do festival. Para além da promessa da enorme cabeça de cartaz reservada para este dia, The Alchemist, avizinhava-se um verdadeiro arraial de dança com nomes como Julinho KSD, Dino D´Santiago, Cintia e Holly.
Começando pelo concerto de Julinho KSD, naquela que foi a tão esperada apresentação ao vivo do seu primeiro álbum “Sabi na Sabura”, sentiu-se no ar toda a libertação após ano e meio de dançar em casa. Com convidados como Dino D´Santiago para cantar o tema “Kriolo” e Instinto 26 para cantar os hits “Gangsta”, “Sólido” e “Bandidas”, o público não parou um segundo, dançando ao som dos ritmos quentes e dançáveis de populares temas como “Mama Ta Xinti”, “Sentimento Safari” e “Hoji N´Ka ta Rola”. Este concerto terminou com uma roda, que levantou muita poeira ao som de “Stunka”.
De seguida dirigimo-nos ao Palco Choque para mais uma eletrizante performance, desta vez pela parte de Cíntia, que também fez uma multidão dançar ao som de populares temas como “Savana”, “African Queen”, “Grana” e um dos seus mais recentes singles “Je t’aime”. Este mesmo palco acolheria mais tarde HOLLY, que manteve em chamas todos os presentes, com ávidos remixes de obras como “Donda” de Kanye West, envergando uma sweat estampada com o nome e imagem de um dos grandes nomes do hip hop, DMX, falecido recentemente.
Este dia contou com uma das mais aguardadas e entusiasmantes performances: The Alchemist, uma verdadeira lenda no que toca a produção. Depois do aclamado álbum “Alfredo´s” que partilha com outro dos maiores nomes do hip hop atual, Freddie Gibbs, o artista preparava-se para atuar para um recinto cheio de pessoas que envergavam o merchandising da obra, em pulgas para ver um dos maiores produtores existentes, diretamente da Califórnia. The Alchemist encheu o recinto do Palco Gasómetro, onde fãs deliraram ao assistir a um puro espetáculo de mistura de poções, fazendo jus ao nome, obtendo as maiores manifestações de entusiasmo com a batida de “$500 Ounces”, ou qualquer outra faixa presente em “Alfredo´s” e beats que pareciam estar a ser cozinhados à nossa frente.
O penúltimo dia de festival não esmoreceu em termos de cabeças de cartaz de luxo, sendo o prato principal desta vez Slum Village, diretamente de Detroit.
O Palco Gasómetro foi ainda pisado por Chullage com o seu projeto Pretú, onde cativou toda a audiência com as suas letras carregadas de mensagem, sobre beats mordazes, alguns em colaboração com grandes nomes como Scúru Fitchádu e Cachupa Psicadélica.
Mais tarde foi a vez de Nenny se estrear neste festival, para uma multidão enorme que ansiava a performance de temas como “Tequila” – também presente em A COLORS SHOW-, “Bússula” e “Sushi”. O principal destaque foi, no entanto, para a música “Dona Maria”, onde a artista chamou ao palco a sua mãe, acompanhada de vários familiares, para dedicar esta profunda canção, num momento que não deixou ninguém indiferente, em busca de lenços para toda a emoção sentida.
Sem grande tempo para recuperar de tanta emoção, seguiu-se um dos momentos mais altos da noite, Slum Village, que proporcionaram um concerto que ficará para sempre na história. A performance de conhecidos temas como “The Look of Love”, “Selfish” -que partilham com Kanye West- “Fall in Love” e inúmeras menções e homenagens a J Dilla vieram mostrar como se faz, num display assertivo de MCS old school, que sabem como levar uma plateia à euforia.
Seguimos para dar mais uma volta no Palco Choque onde atuou Carlitos Lagangz, rapper que deu uma aula de drill internacional aos ouvintes, colados a colunas que quase rebentaram com a agressividade das batidas.
A noite terminou com um DJ Set esgotado de Branko, que fez todo o recinto, na sua capacidade máxima, dançar ao som dos seus temas, não fosse também ele um ex-integrante de Buraka Som Sistema. A quem sobrasse dúvida, podia verificar por todo o merch, vestido pelos fãs presentes no recinto.
Não menos entusiasmante foi o quarto e último dia de festival, que arrancou com a performance de um dos mais icónicos gaienses, David Bruno, acompanhado pelos seus fiéis e talentosos comparsas, Marco Duarte e DJ António Bandeiras.
Num trio apelidado por David Bruno como “Os power rangers de Rio Tinto”, com indumentária à altura, constituída por e somente um fato de treino, estes artistas brindaram-nos com as habituais histórias, interação com o público, crowd surf de António Bandeiras e o lançamento da regueifa e rosa de António Bandeiras, num concerto que nunca nos cansamos de ver, por ser sempre diferente, divertido e, especialmente, único.
A noite contou ainda com Pedro Mafama, na apresentação do seu novo disco “Pelo Rio Abaixo” e Eu.Clides, que mostrou os seus dotes de cantor e produtor, tendo encantado todo o público do palco Cine Estúdio.
De destacar ainda a incrível e derradeira batalha de breakdance que ocorreu no Palco Choque, onde nem o público esteve a salvo. Os moves apresentados numa que foi uma das mais e impressionantes exibições de talento em todo o festival, acompanhados da reação efusiva de todos os que viram, vieram relembrar a relevância desta arte e a importância de se dar mais atenção à mesma. Um verdadeiro bónus em pontos de nostalgia, para quem cresceu a ver America´s Best Dance Crew, vidrado no ecrã.
Terminou assim mais uma edição de um dos mais importantes festivais para a nossa tão adorada cultura. Este festival de cariz nómada consegue ser pioneiro na sua essência e conceito, sendo assim importante enaltecer a excelente plataforma que oferece a um grande número de artistas, nas mais variadas vertentes. Depois de todos os contratempos sofridos com a pandemia e a ressacar há mais e um ano sem festivais, Vhils montou uma verdadeira Disneyland para a cultura urbana, onde certamente todos nos sentimos crianças livres e felizes outra vez, rodeadas de arte na sua forma mais pura e crua, durante quatro dias onde só apetecia gritar “finalmente”.