Com o Natal à porta há quem decore a árvore, embrulhe as prendas e encomende rabanadas. TOM, M.A.C e Silab & Jay Fella decidiram dar um twist à tradição e, neste ano tão atípico, levar a Margem Sul ao Porto no ambiente mais familiar possível, com um concerto de deitar abaixo qualquer decoração. O Natal chegou mesmo mais cedo para todos os presentes, pela mão de Keso, que montou um real festival de hip hop na Invicta, um verdadeiro regalo para os maiores fãs do género.
Pois que se esqueçam as rabanadas, o bolo-rei e a aletria, o mais requintado banquete estava montado no emblemático Plano B -sob as luzes néon vermelhas que, mesmo que por coincidência, tão bem conjugaram com a quadra- servido por uma fina seleção de integrantes da icónica Mano a Mano.
E o que se viveu ali foi, da maneira mais crua, uma exibição de puro talento para o rap numa noite “100% Almadense”, onde o ritmo nunca abrandou, ao longo de quase três horas de espetáculo, com inúmeros convidados e surpresas.
Como apreciadora do género, a atmosfera sentida naquela sala era ímpar. Embora as reações efusivas se tenham iniciado logo a partir do momento em que o primeiro convidado, Mlk Mau Aluno, pisou o palco, quando foi a vez de TOM (Freakin Soyer) marcar presença, a plateia ganhou vida de uma maneira que me fez pensar em como será para o artista receber aquela energia de volta, sabendo que acts como os presentes naquela noite dão tudo, debitando letras com significado atrás de letras com significado, sobre poderosos beats, nunca deixando de fora a extrema interação com o público – algo que é um fator crucial e sobressai, quando falamos em concertos ao vivo.
Ao longo de temas como “Titã”, “VNNO” e “Coisas D’um Louco” a admiração crescia, vendo que a plateia repetia as letras como se os próprios constituintes da mesma as tivessem escrito, constituintes esses que variavam amplamente entre faixas etárias; um detalhe que certamente não vou esquecer tão cedo foi o senhor a meu lado, a quem eu, por estimativa, atribuiria uns nobres 60 anos, que tentava repetir, de forma entusiasta e ao longo de todo o concerto, as letras que ia apanhando e interagia com tudo o que lhe era pedido: de entoações a gestos de mãos.
TOM chamou ainda ao palco nomes como Vato, Silva G e Jay Fella, mostrando a sua versatilidade e cimentando o seu nome como um artista que é facilmente capaz de incentivar qualquer pessoa a querer vê-lo ao vivo várias vezes, quer pela sua impressionante presença em palco e pela maneira como o incendeia, como pela destreza que apresenta ao debitar as suas rimas, carregadas de duplo sentido, trocadilhos inteligentes e que contam histórias, mostrando, caso dúvidas houvesse, que o que ele faz “é hip hop memo! não é só ter umas dicas e umas funny punches”.
Ainda com as tábuas do palco a vibrar e sem qualquer tipo de intervalo, foi a vez de M.A.C tomarem o espaço de assalto, atacando com uma mistura de faixas do seu novo álbum “Sem Título” e temas mais antigos como “Criança” e “Deve ser da Guita!!!”, recebidos pela plateia com um carinho e entusiasmo possíveis de sentir a léguas. Destaco a participação de Amaura na bonita faixa “Hoje é dia” e também aquele que considero ter sido um dos momentos altos da noite: numa manifestação do expoente da tão apreciada interação com o público, o palco encheu-se do mesmo e, num clima de amizade e puro entusiasmo, foi cantado o tema “Chokolate Rocka”, a dezenas de vozes, naquilo que parecia uma reunião de família. Este foi um daqueles momentos de realização em que se pensa: “Hip hop é isto. Materializado aqui à nossa frente”.
Houve ainda um importante e merecido shoutout a Keso e a toda a organização do festival, por fazer acontecer este tipo de “cenas que batem cá dentro, para quem ama hip hop”, pois, como dito por M.A.C, este não é um festival só com uma ou duas atuações de hip hop, é hip hop puro durante sete dias, vivenciado por e para quem realmente sente a cena. É de louvar, por ser tão necessário, bem conseguido, e por, – possivelmente- poder inspirar mais pessoal a fazer o mesmo, por este Portugal fora.
Para finalizar esta exímia representação da margem sul, Silab & Jay Fella abriram a sua chegada ao palco com o tema Forty Five, para avisar – em tom de spoil – o que seria a sua performance, como a própria letra anuncia: “Cá na margem sul, we got/Got that atitude and style so dope/Dois oito forty five “. Não foi nada menos que isso, uma verdadeira festa cheia de atitude estilo block party -mas com nuances de r&b- ao som de êxitos desta dupla maravilha, que apresentou músicas como “Já Viste”, “MS Episodes”, “Dillinger, entre muitas outras.
Vindo de alguém que esperava há muito ouvir o banger “Drive” ao vivo, asseguro que não poderia ter sido melhor, por terem surpreendido com a chamada do próprio Blasph ao palco, artista este que nem tinha de cantar a sua parte da música se não quisesse, pois a plateia sabia de cor a letra e fez questão de a gritar ainda mais alto que o artista. Foi bonito. Ao ponto de Silab e Jay Fella terem admitido que “foram o melhor público até hoje” e “vocês estão de parabéns”. Talvez também por isso tivemos direito a ouvir algumas faixas ainda por lançar, uma delas intitulada “Flash”, que sairá em breve.
Terminou assim uma noite onde se revelou, para qualquer pessoa que estivesse a assistir, impossível ficar indiferente à energia e skill trazidas da margem.
O que experienciei foi certamente apenas um vislumbre do incrível que terá sido o festival Natal do Marginal, um festival montado por Keso com “79 artistas, 20 performances, 10 espaços, 7 dias, 0 financiamento público ou apoio municipal, 0 problemas.”, como escrito pelo próprio nas suas redes sociais.
Eventos como este acendem em qualquer amante de hip hop aquela centelha que relembra o quanto esta cultura significa para quem a vive, e a sorte que é poder experienciar acontecimentos como este, especialmente depois de um ano sem acontecer e ainda em tempos tão conturbados. Só serve para relembrar que não só o hip hop está vivo como – sim, atrevo-me a dizer – nunca irá morrer. Pode ter fases, pode apagar-se, voltar à luz, incendiar, mas voltará sempre das cinzas e em constante mutação -ou não- basta haver alguém, movido a paixão pela coisa, traduzido em dedicação. Há que apoiar, consumir, incentivar, criar se assim aprouver, e lá estaremos, para testemunhar noites memoráveis como esta. Que venham muitas, de todas as margens e em qualquer época. (Foi) Um feliz Natal (do Marginal).