Hip Hop Rádio

Crítica | Inacabado

Com pouco mais que algumas horas de vida nas plataformas digitais, este inesperado “Inacabado” EP de xtinto e benji price parece defender que a arte não necessita de maiúsculas – e que cinco temas são suficientes para declarar esta música sem compromisso que a dupla da Think Music tem vindo a criar ao longo do último ano.

Depois de uma panóplia de faixas soltas, finalmente há um sucessor a Odisseia, mixtape que juntou xtinto a DEZ, e que estreia, oficialmente, o MC de Ourém com a label de ProfJam. Curiosamente, há um nome em comum nestes dois projetos: benji price, fundador da extinta Andromeda Records e que tem sido a cola fundamental às edições da Think Music, assina agora a produção instrumental deste “Inacabado” com mestria, soldando o característico (e, diga-se, único nestas andanças) pen game de xtinto a uma variedade de estéticas sonoras – que se provam a versatilidade dos dois criadores. Há boombap em “interlúdio”, drill em “verbena”, beat switches que se permeiam no flow acutilante de xtinto, melodias e percussões entusiasmantes – a base instrumental de piano em “caixa” ou as batidas por minuto gradualmente alucinantes na reta final de “ébano”.

“Inacabado” parecer ser uma curta amostra do excelente trabalho que os dois têm vindo a desenvolver, uma união natural entre dois dos maiores jovens talentos do rap game português. As cinco faixas sabem a pouco. As rimas ácidas e insaciáveis do rapper revestem este EP de uma singularidade única na cena musical portuguesa, trazendo as conhecidas “barras” com distintas referências (“mente arrasa qualquer Vista Alegre/ boneca de porcelana que nunca quer que eu vista a lebre”), jogos de palavras (“não sei se falei na/ forma que eu dropo dá-te encefaleia”) e trocadilhos (“ri-te agora isto é esquizófónico”), linhas imbuídas de aliterações e assonâncias (“e é por isso que o DEZ culpa, toda a minha conduta adúltera se esfarrapar toda e qualquer desculpa”), encavalgando na sua métrica uma voracidade nítida na voz e na atitude ao “cuspir”. E, se a sua habilidade em construir refrões cativantes já era clara em “Sangue Novo”, “Jurássico Barco”, “Opus Magnum” ou “Pentagrama”, é uma certeza que a caneta de xtinto promove versos carismáticos a puxar o ouvinte a cantar com ele (ou com benji price, em “sinope”, “certo que virarei rei”), assim como a tentar debitar com ele quer o que parece ser o tema mais confessional do EP, “interlúdio” – “fixei a rotina dos semáforos/ estrago-te os planos/ o vermelho diz-me que ‘tás verde para avançarmos/ e que tal dançarmos nas linhas brancas desta passadeira até vir carros” – como os bangers onde a cadência musical soa extraordinariamente limpa e polida, a dicção ditando quais as barras que os fãs vão decorar e cantar em uníssono nos futuros concertos (“o meu trabalho é dar coça a vários/ tenho mesmo a picha grande/ vai que o mangalho até já coça ovários”).

Um EP que parece ser o primeiro passo para algo de maior escala, é um excelente seguimento a “Odisseia” e à lista de reprodução das plataformas de xtinto, um MC cuja evolução tem sido contínua e prolífica, conseguindo crescer musicalmente sem alterar as características que o seu rap tem revelado desde o início e formando uma sólida fanbase de “hip-hopcondríacos”. E, neste ponto-de-vista, é impossível, para quem tem acompanhado o percurso do rapper de Ourém, disassociar estes cinco temas dos cinco temas que xtinto dropou nos dois últimos anos. Primeiro, pela continuidade das suas letras (referência a “pentagrama” e a “alter-egos”, por exemplo), depois, pela certeza e estética vincada que emana a sua discografia, sem registos similares no hip-hop português.

“Inacabado” está inacabado – à imagem da trilha que o MC e o produtor vão vincando no underground, referência visual do clipe de Billy Verdasca que tão bem reforça essa premissa (“fuck ouvinte”), e, como um todo, no panorama do hip-hop luso, onde é impossível não notar a sonoridade de xtinto e benji price.

 E, se “Inacabado” reflete o próprio título, podemos esperar uma sequela ao trabalho da dupla – um LP inacabado que peque pela latência, ao invés de pecar na duração? Ou um disco impermeável como futuro opus magnum de xtinto? De qualquer das formas, a expetativa está alta. Principalmente depois de algumas escutas em loop desde novo EP.

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