Hip Hop Rádio

As faixas da nossa terra

Giovani Rodrigues, Cláudia Simões, Bruno Candé Marques. Vítimas do racismo sistémico e institucional em Portugal – só em 2020. Seres humanos assassinados e brutalizados pela sua cor de pele. Pessoas que viveram – e morreram – por uma realidade incontornável que aflige qualquer país com passado colonial: o racismo, esse bafiento estandarte da eugenia, da discriminação, da repulsa. É inegável a sua vigência: há dois dias, na principal avenida de Moscavide, em plena luz do dia, Bruno Candé Marques foi assassinado, baleado. O autor dos disparos não se escusou de lhe dizer: “volta para a tua terra”.

Na verdade, Bruno Candé nunca saiu da sua terra. Bruno Candé tinha a sua terra sob os pés. A mesma terra onde, por mais de vinte anos, se tem cantado contra o mesmo status quo racista que faz perdurar o preconceito, o desprezo, e a luta. No hip-hop, recordamos instantaneamente o homicídio de Snake MC. Se olharmos de cima, são vários os casos de racismo que, todos os meses, incendeiam as redes sociais. E vários foram os MC’s que dedicaram as suas vozes e os seus instrumentos à luta anti-racista, de Chullage a Allen Halloween, General D a Tekilla, NGA a NBC – que nos relembrou hoje d’”A Dor Que Fica”. O rap nacional muitas vezes procurou rimar sobre as injustiças sociais e desabafar sobre a criminalização e marginalização da comunidade afrodescendente – hoje, como ontem, como amanhã, é um bom dia para recordar o que nos dizem os músicos que, todos os dias, sentem também eles a injustiça perpetuada por séculos de colonização.

NBC

A Dor Que Fica (2020)
“O teu coração parou
Foi levado por um tiro de alguém que nunca amou
O teu coração parou, deitado numa rua com uma manta, como fazes aos teus filhos
Com beijos e carinhos como um pai tem
Com beijos e carinhos que um pai tem”

Tekilla x Filipa Azevedo x Jakson D'alva

Arrepio (2020)
“Até quando esta luta?
Que sentido é que isto faz?
Junta tanta gente aqui e nada de novo traz
(…)
Aos anos que sonho com o brilho da igualdade, uma verdade que pouco revelo,
Filho de mãe solteira, criou seis filhos,
Pai morto, com treze tiros

Prétu x Lowrasta

Waters (pa nu poi koraji) (2019)
“Não quero mais ouvir que é certo
Viver nesta linha que deus escreveu torta
Morrer à nascença, nascer com a sentença,
de quem pensa que a minha vida não importa
(…)
Minha raça quer faça não faça, é carne para caça, que se assa, não importa
Minha raça se não levanta uma taça, não dança devassa, então não importa
Minha raça se não lava, não passa, não carrega massa, então não importa
É só um corpo que naufraga um corpo que se afoga”
 

PERIGO PÚBLICO x SICKONCE x Edna Oliveira

Rosa Parks (2019)
Das sanzalas às barracas, cidades foram tomadas
Meu povo dança para vingar para as chibatadas
Isto é arte pela arte, cultura pela cultura
Nem pretos nem brancos, nós somos pela mistura
(…)
E mesmo que nos calem a caravana não abranda
Até fazer o mesmo que o Luaty fez na banda
Wakanda agora é meu mantra, o espírito é Marielle
Porque a raça de um homem não se vê na cor da pele”
 

NGA x MadKutz x David Cruz

Se Me Tivesses Dito (2019)
“Eu sou filho de uma, neto dum, nigga eu sou Bantus
Sou um dos sobreviventes das guerras de Moçambique
Que nas veias corre sangue dos oprimidos pela PIDE
Sou o preto que na Europa atura polícias racistas
(…)
Compro um bocado de terra, na terra mãe
Lembra que é na terra mãe que a gente enterra a mãe”

Bob da Rage Sense

Nunca Estiveste na Minha Pele (2009) 
“A tentar encontrar um lugar, neste mundo, a que pertença
Se for agradecer, bro, a minha lista é extensa
Fui muito bem recebido por uns, obrigado
Mas sinto que a cada degrau ultrapassado
Mais sou invejado, estupidamente difamado,
desde quando um preto chega a ser branqueado?
Saí dum guetto e vi para outro guetto inocente
Só se fosse doente é que desprezaria a minha gente”

Valete

Subúrbios (2006) 
“Porque nos subúrbios o sol levanta sempre mais cedo
É um povo escravizado nesta sociedade de extremos
Trabalham 2 vezes mais e ganham 2 vezes menos
(…)
Negros dos subúrbios são sempre vistos como gente a mais
Para as discotecas africanas eles são pretos demais
São 22 horas ainda há gente no trabalho
Porque para os suburbanos a lua levanta sempre mais tarde”

Allen Halloween

Raportagem (2006) 
“Discursos enfeitados iludem a maioria
Desculpabilizam fracassos perseguindo minorias
(…)
Homem africano, nato, desempregado
Um indivíduo considerado um inimigo do estado”

Chullage

Dedicatória (2001)

“Quantos brothers já passaram pelo banco dos réus?
Quantos só encontraram a paz o descanso nos céus?
Quantos a policia filou, como se eles fossem troféus, e escondeu a verdade como falsas virgens escondem a cara atrás de véus?
Quantos foram atirados para fora das naus,
quantos foram castigados com chicotes, pedras e paus,
se querem que eu diga,
foram tantos que eu já esqueci,
por isso dedico isto aqueles a quem nunca foi feito um minuto de silêncio por si”

General D

Portukkkal (1994)
Talvez eu não venda
Talvez eu não seja
A luta continua Luther King que me proteja
(…)

 

aqui é Portukkkal
erro ou país
coisa de raíz”

Dez temas de partilha, frustração, revolta. Histórias de guetização, brutalidade policial, preconceito enraízado. Através da música, milhares de MC’s portugueses reveleram, revelam, destacam e confrontam o racismo, a xenofobia, a marginalização das minorias. De NBC, em 2020, a General D, em 1994, de 94 a séculos antes, de 2020 a um futuro incerto.

Como Snake, como todos “aqueles a quem nunca foi feito um minuto de silêncio por si”, Bruno Candé não morreu na sua terra. Bruno Candé foi assassinado na sua terra. 

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