Depois de quase dois anos de aulas remotas e telescola, um dos “professores” mais respeitados pelo público voltou para dar a aula presencial mais aguardada dos últimos tempos.
Em tom de celebração dos seis anos da mítica “Mixtakes”, o ilustre Coliseu dos Recreios encheu-se com “alunos”, de olhos postos no professor e prontos para tirar apontamentos, num concerto que pôde ser interpretado como uma subtil aula de filosofia, não fosse esta talvez a obra mais introspetiva de Profjam, recheada de letras que não prescindem de algumas horas de estudo.
Antes do toque de entrada, o recreio, que já só chamava pelo “Super Mário”, foi animado por Osémio Boémio, que tocou uma fina seleção de hip hop estrangeiro, dando principal destaque a nomes como Mac Miller -cuja discografia se ouvia tocar, quase em surdina, assim que entrámos no recinto- e Joey Bada$$, preparando os presentes para o que se aproximava. Assim que o DJ set terminou, o barulho das acesas mixes foi substituído novamente por cânticos entusiastas, que chamavam o artista principal da noite: “Mário, Mário, Mário!”. Finalmente as preces foram ouvidas e quando as luzes se apagaram, todo o público acendeu.
Profjam estreou o palco nessa noite ao som de “Festa Privada”, apropriado à razão deste concerto tão especial, “tecendo as suas teias, já que o seu pensamento é seda.” e deixando explícito um aviso: “Vou a partir esta merda, partam comigo família!”. Não mentiu e a família ajudou, tornando este num dos concertos com mais poder que vi nos últimos tempos.
Continuando com a mesma energia, apresentou o tema “Hustle”, antes de ter confessado que tentou fazer um espetáculo à medida do público, por saber que esta foi uma obra que marcou muita gente. Não desprendendo desta nota mais emotiva, dedicou a próxima faixa “Divisões” ao seu falecido “irmão, que está no céu”, dando um significado ainda mais profundo aos versos: “E reza por mim na morte, porque ela não é o final/ É que afinal, não há final”.
Depois deste momento, Profjam decidiu apresentar a sua banda, que conta com Rivathewizard nas teclas, Gonçalo Lemos no baixo e Cecília Costa na bateria, aproveitando também para pedir um aplauso para o próprio público, que vinha com a lição na ponta da língua, repetindo todas as letras que o artista ia debitando.
Em tom de homenagem ao mesmo, proferiu a mensagem: “Façam barulho para vocês todos em comunhão. Não há divisões irmãos, ´tou aí com vocês, vocês ‘tão aqui comigo.”, antes de avançar para “4 Elementos“, outra faixa que causou uma forte comoção, assim que se ouviram os primeiros acordes. A performance desta música precedeu uma das maiores surpresas da noite, a presença de MC Hypnotik em palco, para cantar o seu skit presente nesta obra “Dope (Hypnotic Skit).“
Por esta altura tornou-se evidente que o sumário seria seguido à risca e que nenhum tópico ficaria por cobrir, o que significa que se ouviriam, sem exceção, todos os temas desta obra. Assim, seguiu-se um conjunto de músicas entrelaçadas com lições de filosofia para refletir, que não deixaram ninguém indiferente:“Lodi Dodi”, “Além”, “Sinestesia”, “O Espectro” e “Bane”.
Estas faixas são, na minha opinião, algumas das que mais enaltecem o cariz introspetivo deste artista, que parece ter como principal objetivo deixar uma mensagem de que nem tudo é preto ou branco, não visse ele “o espectro completo da luz”. Quer seja através da utilização de samples de personalidades como o Pastor Charles Stanley ou o filósofo britânico-americano Alan Watts, ou de mensagens proferidas pelo próprio, Profjam com este disco procurou incentivar qualquer um a atravessar as adversidades e tentar fazer delas arte, como o próprio conseguiu, questionando cuidadosamente o mundo à nossa volta e acreditando que é possível ultrapassar o passado, focando num futuro mais brilhante, com uma mente aberta que busca mudar para melhor. Sabendo que “a vida é curta” e que essa foi uma das lições que aprendeu, o artista deixou também um apelo: “Não aceitem as respostas Dele sem pensar nelas primeiro.”
Em concordância com o tema e mensagens deste espetáculo e num momento poético -se interpretado-, o palco e as luzes mudaram, para revelar um espelho retangular, suspenso acima de Profjam e da sua banda, que refletia não só o palco, como parte do público e ocasionalmente outras animações.
Gostaria de destacar os momentos em que Profjam se virou para o espelho enquanto cantava, provavelmente para poder refletir -física e mentalmente- sobre tudo o que atingiu desde o lançamento deste projeto, estando não só perante um coliseu cheio para o ver, mas também de um “eu” que se reinventou perante adversidades e se encontrava ali, forte e pronto para continuar a espalhar a sua mensagem e inspirar os seus ouvintes.
O artista apresentou ainda as faixas “Trigo Limpo”, assinalando os seis anos do nascimento deste projeto, com berço em Londres e ainda a receber um carinho especial que se mantém até hoje, “Limpa-Fundos”, que admitiu ser uma das suas faixas favoritas e arrancou mais um coro da parte da plateia, e “Mikado”, onde pediu ajuda para que cantassem com ele. Claro que o público não desiludiu e, em tom de recompensa, pudemos experienciar a música “Lo-fi” a capella, num dos momentos altos da noite. Os versos repletos de significado, ainda bastante atuais “´Pó morto há respeito, imagina se aplicássemos/A lógica que o vivo tinha o direito ao me´mo!/Talvez o teu desenho passasse a ser tipo um Picasso/E a história que vem de ser humano não tinha h pequeno!” ecoaram por todo o coliseu e foram recebidos de braços -e mente- abertos, por uma plateia imersa em euforia.
Já na reta final cantou “Baudelaire” e uma das mais esperadas “Queq queres?”, que incendiou o coliseu de tal maneira, que por momentos se pensou que os fãs fossem saltar as grades e juntar-se ao artista em palco.
Mostrando que a “síndrome de MC” do artista continua bem ativa e com forte tendência a causar estragos, esta faixa fez os níveis de energia sentida atingirem valores exorbitantes, o que levou Profjam a admitir, algo emocionado: “Nunca imaginei que isto fosse possível, muito obrigado. Obrigado por terem vindo comigo nesta viagem do tempo, queq querem que eu diga?”
Seguiu-se um momento não menos importante e pessoal, que precedeu a apresentação da música “David”, no qual o artista se dirigiu à plateia para dar alguns conselhos: “Queria relembrar que a vida não tem só um lado científico, tem um lado artístico, é o vosso poema que ‘tão a pensar na cabeça que cria uma história, pensa bem naquilo que ’tás a escrever na tua caneta todos os dias, vamos fazer desta vida uma obra de arte, criar uma cena bonita.” Como diz nesta música, “Trago de volta a esperança e entrego-ta nos phones”, agora ao vivo e certamente a inspirar ainda mais, o rapper apresentou por fim a última faixa de “Mixtakes”, “Malang Kalam”, mostrando que, de facto, “este puto sabe” e “tudo fará sentido na reta final”.
Não satisfeito ainda, todo o público implorava por um encore, enquanto entoava o nome “Mário” e a tão famosa frase “Só mais uma”. Para o maior deleite dos presentes o artista voltou, para repetir a “Queq Queres”, o que resultou num coro ainda maior do que da primeira vez que foi apresentada. É importante destacar a energia de Profjam que não abrandou nem por um segundo, mesmo após estes anos sem atuar, o que leva qualquer um a crer que este artista tem mesmo “Víris, Gula e Sam, Mundo, Allen Halloween” dentro dele e por isso cospe bué, afinal, é como andar de bicicleta e o flow e estofo de pulmões nunca se perdeu.
O artista despediu-se com “a gente já se vê outra vez” e abandonou o palco, deixando milhares de pessoas a tentar processar o privilégio que foi terem testemunhado este concerto ao vivo, muitas delas abraçadas ao vinil de “Mixtakes”, vendido ali pela primeira vez.
“Contem comigo enquanto o meu eu artístico viver. O que eu mais desejo é chegar com vocês a um sítio que nem sequer sei se existe, por uma rota que traço com uma caneta que tem tanto de bênção como fardo, em cima de um mapa velho e amarrotado que a Modernidade deitou fora.” – foram esta as palavras escritas por Profjam nas suas redes sociais, após encher o mítico Coliseu dos Recreios para dar a aula de uma vida. Este espetáculo foi um exemplo de que este artista, como manifestou na sua faixa “4 Elementos”, criou mesmo a sua escola e fez a sua turma e agora é um dos maiores sucessos do rap português, com um “bebé” de seis anos que não só já pode ir à escola, como está já mais que apto para ensinar.
Fotos por: Nayara Silva