Hip Hop Rádio

A marcha dos 10 mil homens e mulheres que fez a História do Hip-Hop Tuga

8 de março de 2019. Altice Arena, Lisboa. São dez horas da noite e o recinto do pavilhão começa a encher, à medida que as luzes vão diminuindo de intensidade e o primeiro MC do hip-hop nacional sobe a palco. “Black Magic Woman” inicia os seus primeiros acordes. É visível a idade avançada dos artistas que abrem a noite, mas a ovação recebida indica que o icónico General D e Os Karapinhas, que o acompanham, ainda não foram esquecidos das playlists de muitos hip-hop heads presentes. Seguiu-se o coletivo Black Company, de Gutto, Bambino, Makkas e KJB. O ano é 1994. E, se até então, com a gloriosa Rapública, ninguém “sabia nadar”, mais de duas décadas depois, o que é difícil é deixar-se ficar à tona – que o digam as 12 000 pessoas presentes, na passada noite, num concerto único e sem repetição possível. Será que é esta a marcha dos 10 000 homens – e mulheres – da qual falou Valete?

O ano era 2009. O sonho era este: a marcha dos 10 000. E o caminho foi longo, os anos passaram calmamente, com tempo para escutar. Ace e Presto honraram os extintos Mind da Gap, Chullage levou consigo a intervenção a palco, Sam The Kid provou mais uma vez a razão da sua marca neste longo romance: “Não Percebes”, “Tu Não Sabes”, a icónica “Poetas de Karaoke” e “O Crime do Padre Amaro”, com Carlão (que contou à multidão ter conhecido a mãe das suas filhas e atual esposa quando da realização da banda sonora do filme homónimo) foram as músicas escolhidas pelo MC e produtor. Boss AC também trouxe consigo os clássicos e “ninguém parou”. Micro, de Sagas, D-Mars e Nel’Assassin, NBC, Tekilla ou SP & Wilson, com o beatbox sempre presente, seguiram a cronologia da história do hip-hop nacional, que também viu o mítico coletivo Dealema subir a palco, por duas vezes, com “A Cena Toda” e “Sala 101”, Sir Scratch, com os clássicos “Nada a Perder” e “Tendências” (com STK na MPC), e Xeg, com o hit “Verão Passado” – “é só uma brincadeira”, garantiu a todas as mulheres presentes.

Escusado será dizer que, em pleno Dia Internacional da Mulher, o género feminino foi representado a rigor: Capicua, M7, Tamin e Eva RapDiva uniram-se para cantar o tema “Maria Capaz” e incendiar a plateia, nunca esquecendo a eterna mensagem da mais aclamada MC portuguesa de que “faltam mais mulheres a fazer rap”.

E o tempo avança – o que, para desilusão de toda uma geração de ouvintes de hip-hop, significa que a “Brilhantes Diamantes” não será cantada por Maze. É altura de uma nova década, introduzindo novas vozes, novas tendências: o rap algarvio conta com os Tribruto, de Kristóman, Realpunch e Sickonce (também conhecido como Gijoe), e o seu mote de “é grande e grosso”; a norte, Deau, sem Bezegol, cantou “Diz-me Só” acompanhado de um mar de luzes e de braços, tal como Bispo com a sua “Nós2” – também sem Deezy – ou “Conheço-te de algum lado”, de Bob Da Rage Sense. A história cantava-se, os anos passavam. Virtus, com o tema “Sinónimos”, e Keso, com “Underground”, podem não ter levado a maior salva de palmas – ainda que merecidas – mas levaram para a Altice Arena a arte da palavra – assim como Nerve que, com “Subtítulo”, foi ele próprio antes e depois de subir a palco. É o auge da nova escola, quando o Gancho, de Regula, chega às plataformas mainstream e aos ouvidos de um novo público. E, em representação de uma nova guarda, Dillaz, ProfJam, GROGNation e Piruka sobem, por duas vezes cada, ao palco, obrigando os presentes a cantar com eles os seus temas mais marcantes, como “Não Sejas Agressiva”, “Queq Queres” ou “Aleluia”; e Phoenix RDC, “um gajo fodido”, e Vado Mas Ki Ás, o único representante do rap crioulo, que saiu a cantar “brincar é no parque”, também mostraram o porquê de fazer parte desta história, com grandes reações do público. NGA, que estava no cartaz, não apareceu.

E o ano é 2017. São quase duas da manhã e a noite foi longa, entusiasmante. Não é para menos. Todas as vertentes que fazem esta cultura viver passaram diante dos nossos olhos: Nomem e Youthone pintaram o cenário durante todo o espetáculo; os quatro Dj’s de serviço foram alternando nos pratos (Bomberjack, Cruzfader, Kronic e Nel’Assassin) e até o breakdance esteve presente com as atuações das crews 12 Makakos e Gaiolin City Breakers. Aproxima-se o final do concerto: ProfJam, de branco e com Mike El Nite na back, prova a todos que não é “Água de Coco”. Holly-Hood cospe “Miúda”. E o coletivo de Vialonga, Wet Bed Gang, fecha a festa com o grande êxito do último ano, “Devia Ir”. Ficou, talvez, a faltar a cereja no topo do bolo, “Sendo Assim”.

E o ano é 2019. Todos os artistas sobem ao palco. Abraçam-se. Tentam falar ao microfone já desligado, para falar com o público, mas não conseguem. Para falar com o exército de mais de 10 000 que marchou toda a noite, sem descanso. E, tal como o sonho de Valete se cumpriu e um movimento nascido do underground foi, ontem, capaz de “encher o Pavilhão Atlântico”, Boss AC também se emocionou com o peso do legado: aplaudiu esta cultura que, depois de mais de duas décadas de crescimento, levou pais e filhos, juntos, a um concerto que marca, sobretudo, todo o caminho percorrido pelos que, ao amar a arte das rimas e batidas, ontem puderam pisar aquele palco, mas lembrando também todos os que, mesmo ausentes, foram essenciais para a definição de hip-hop tuga, desde as rimas de Barrako 27, Nigga Poison, Nexo, Esquadrão Central ou Reyes, às tags de Obey ou Exas, aos vários grupos pioneiros do breakdance. Kappa Jotta, que também estava na plateia, foi outro dos mencionados pelo voz-off que, por quatro vezes, intermediou o concerto em honra dos pioneiros.

Com organização da Faded., a História do Hip-Hop Tuga faz, agora, também ela parte da própria história, essa ainda não escrita teoria, vincada pela mão de centenas de MC’s, Dj’s, writters, b-boys b-girls. E a marcha dos 10 000 homens e mulheres teve, por fim, a meta pretendida. É preciso reconhecer que todos os soldados são importantes, em todas as batalhas, quando o objetivo é ganhar a guerra. A “nossa” história ainda mal começou.

Talvez daqui a vinte anos sejamos 20 000. Pais e filhos, juntos, a ver e a marcar presença na história do hip-hop tuga.

 

Foto-galeria  de Carlos Pfumo disponível para ver aqui.

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